O mês de junho é marcado como um período para promover campanhas, debates, divulgação e conscientização da doença falciforme. A Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu em 2008 o dia 19 de junho como o Dia Mundial de Conscientização sobre a Doença Falciforme. 

A doença falciforme é uma doença genética e hereditária, caracterizada por uma alteração anatômica nos glóbulos vermelhos. Os glóbulos vermelhos ficam parecendo uma foice, daí o nome falciforme. A membrana das células rompem-se mais facilmente, causando anemia e uma série de outras complicações na saúde. 

Essa condição é mais comum em pessoas negras. No Brasil, chega a acometer  8% da população negra, mas devido à intensa miscigenação historicamente ocorrida no país, ela pode ser observada também em pessoas brancas ou pardas. 

Diagnóstico e sintomas

Todas as gestantes em qualquer maternidade, pública ou privada, têm direito a solicitar o teste do pezinho, que é uma forma precoce de descoberta da doença, obrigatório no país desde 1992, quando foi incorporado no SUS. Na fase adulta, é pelo exame de sangue que se detecta a doença.

Há diferentes tipos de Doença Falciforme. Ou seja, a manifestação e severidade da doença podem variar de pessoa para pessoa. Os sintomas geralmente aparecem depois dos 6 primeiros meses de vida e podem ocorrer crises de dor aguda nos ossos e articulações, infecções graves (pneumonia e meningite), a chamada Síndrome Toráxica aguda – STA (febre, dor no tórax, infiltrado pulmonar), feridas nos tornozelos, cansaço, AVC (acidente vascular cerebral). Também é possível ocorrer o sequestro do sangue no baço, órgão responsável por filtrar o sangue. Quando o baço de uma criança sequestra o sangue de outros órgãos, como cérebro e coração, há risco de vida.  

A doença falciforme não tem cura. Mas o tratamento e acompanhamento são para a vida toda. Além do médico, é preciso criar um plano envolvendo diferentes profissionais, como assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas. E o mais importante,  a família precisa aprender a identificar com agilidade os sinais que possam levar a uma situação de risco da saúde do paciente. 

Os exames, medicamentos e tratamento são oferecidos pelo Sistema Único de Saúde, de forma totalmente gratuita. O Ministério da Saúde disponibilizou um Manual da anemia falciforme para a população. Acesse aqui.

A Doença Falciforme e o Combate ao Racismo na Saúde: Uma Luta por Visibilidade e Direitos

A Doença Falciforme afeta principalmente a população negra e por isso foi por muito tempo foi negligenciada e estigmatizada. Apesar de ter sido diagnosticada há mais de um século, apenas há cerca de três décadas  a doença recebeu a devida atenção pública e políticas de saúde específicas. Essa negligência histórica revela um preocupante viés racial, onde doenças que afetam predominantemente populações racializadas recebem menos recursos e atenção. O racismo também pode se manifestar na persistência da reprodução de estereótipos no tratamento e no cuidado da população negra, como, por exemplo, minimizar ou duvidar das queixas do paciente.

A falta de divulgação sobre a Doença Falciforme contribui para o sofrimento dos pacientes e suas famílias. O desconhecimento da doença dificulta o diagnóstico precoce, o acesso a tratamento adequado e a compreensão dos desafios enfrentados por quem vive com ela. Essa invisibilidade é um reflexo do racismo estrutural presente na sociedade, que ignora ou desvaloriza as necessidades de pessoas negras que, embora sendo a maioria da população brasileira, raramente têm poder de voz e baixo poder de influência na opinião pública. 

Essa realidade vem mudando. Os sujeitos se mobilizaram. A organização da sociedade civil, dos médicos e das famílias  aumenta o poder de pressão para exigir políticas de saúde, pois as necessidades das pessoas com doença falciforme são intensas e intensivas. Ao ampliar a consciência sobre equidade e sobre seus direitos, as famílias também podem exercer mais plenamente sua cidadania e conquistar mais dignidade para suas vidas. 

O movimento vem se tornando cada vez mais forte e hoje já existem muitas iniciativas voltadas para as pessoas com doença falciforme. Um exemplo é a Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doença Falciforme (FENAFAL), que congrega quase 50 entidades em todo o Território Nacional. É uma associação civil filantrópica, para fins não-econômicos, de controle social do Sistema Único de Saúde (SUS), com  vocação assistencial, cultural e educacional. Como declarado no site da organização: “Sua missão é apoiar o fortalecimento e a auto-organização das associações locais, contribuindo com o fortalecimento e estímulo à formação de políticas públicas e sociais, visando, principalmente, a redução da morbimortalidade das pessoas com doenças falciformes no Brasil”.

A boa notícia para a comunidade que convive com a doença é que atualmente,  a Coordenação de sangue do Ministério da Saúde conta com uma pessoa especialista na doença falciforme. Existe também um esforço internacional em pesquisa em terapia genética na busca pela cura da doença.

Parcerias que transformam vidas: Hemorio e Instituto Dara

Dados de 2023 mostram que no Instituto Dara, 42% das crianças doentes atendidas têm doença falciforme. O apoio às famílias das crianças acontece por meio do Plano de Ação Familiar (PAF), tecnologia social criada pela organização, que consiste no estabelecimento de metas conjuntas e de ações integradas nas áreas de Saúde, de Moradia, de Geração de Renda, de Cidadania e de Educação, visando à autonomia e ao desenvolvimento de famílias em vulnerabilidade social.  As famílias cujas crianças têm doença falciforme atendidas na organização são encaminhadas pela equipe do Hemorio, centro de excelência em Serviços de Hemoterapia e Hematologia do Governo do Estado do Rio de Janeiro. O Hemorio é uma fundação pública, ligada à Secretaria Estadual de Saúde, que atende exclusivamente pacientes do SUS. 

Em conversa com o Dr. Luiz Amorim, Diretor Geral do Hemorio, entendemos mais profundamente a atuação do centro e dos desafios enfrentados pela população que têm alguma doença hematológica.

Desde 2001, no Rio de Janeiro, todas as gestantes em qualquer maternidade, seja pública ou privada, devem fazer o teste do pezinho em seus bebês. Se o teste der positivo ou apresentar alguma suspeita de doença hematológica, os pacientes da rede pública são encaminhados ao Hemorio. Lá, um novo teste é realizado para confirmar o  diagnóstico e subtipos das doenças. 

“O trabalho do Hemorio é gigante”, de acordo com Dr. Amorim. Além do hemocentro, a entidade administra um hospital que atende exclusivamente pessoas com doenças complexas, como hemofilia, leucemia, linfoma. Atualmente, 4.300 pacientes com doença falciforme estão em acompanhamento no Hemorio. O segundo maior grupo atendido é o de pessoas com hemofilia, cerca de 1.200 pacientes. O centro também atende cerca de 80 casos por ano de leucemia e o acompanhamento acontece por mais de 5 anos.

“Os dados mostram que o Hemorio é o  maior centro de tratamento do mundo para pessoas com doenças falciformes. A emergência é 24 horas e das 35 pessoas atendidas por dia, 30 têm doença falciforme. Isso porque a doença traz muitas complicações. A pior delas é a dor. Todos os pacientes têm dor, mas algumas crises podem ser muito intensas, o que exige a administração de analgésicos muito potentes. O hospital conta com 93 eleitos e realiza cerca de 5 internações por dia. O desafio é ampliar numero de leitos para a doença falciforme. É impossivel o Hemorio das conta sozinho.  Lembrando que no caso da falciforme o acompanhamento é para vida inteira.”

Doença Falciforme e Traço falciforme

Dr. Amorim explica que “traço não é doença, não tem remédio, nem o paciente apresenta crises. O que pode ocorrer é uma tendência a infecções”.

A hemoglobina A transporta normalmente o oxigênio. Na hemoglobina S (encontrada em pessoas com a doença falciforme), o glóbulo vermelho perde a forma de disco, torna-se rígido e alterado em forma de foice. Se uma pessoa com o gene A gera um filho de uma pessoa com o gene S, existe 25 % de chance de a criança receber gene S. A isso chamamos de traço falciforme. 

No Rio de Janeiro, 4% dos nascidos vivos possui traço, enquanto que 1 em cada 1200 nascimentos possuem doença falciforme. O Rio de Janeiro é o estado com a terceira maior frequência em diagnósticos da doença falciforme, atrás da Bahia, em primeiro lugar, e do Maranhão, em segundo lugar. 

Tratamento e Terapias

Segundo Dr. Amorim, o tratamento definitivo para a doença falciforme é a terapia genética, disponível hoje apenas nos EUA e economicamente inacessível para a maioria das pessoas.

A hidroxiureia é um remédio quimioterápico utilizado para tratar a doença. Embora a droga exista desde os anos 30, há vinte anos é usada para melhorar a qualidade de vida dos pacientes, pois ela consegue transformar uma parte da hemoglobina S em hemoglobina F (fetal). Isso melhora consideravelmente a condição do paciente e ajuda a diminui as crises. 

Outras terapias são: a transfusão de sangue, em função da anemia, tratamento que pode ter que ocorrer a vida inteira, tratamentos para dor com medicação que vai desde a dipirona até a morfina (dos mais fracos aos mais potentes).

Crianças com doença falciforme podem ter como complicação o acidente vascular cerebral – o AVC. No Hemorio, existe um exame para medir fluxo sanguíneo cerebral e detectar a probabilidade de ocorrência de um AVC. 

Dr. Amorim explica que  o acompanhamento no Hemorio dos pacientes com doença falciforme  é para a  vida inteira. “Há pacientes que precisam de transfusão de sangue todos os meses. O acompanhamento é caro porque exige cuidado em tempo intergral, intenso, contínuo e constante, especialmente das crianças de menor idade. Além da situação econômica dessas famílias, o gasto com transporte pesa ainda mais no orçamento em função das idas constantes ao hospital. Por isso o Hemorio conta com postos de distribuição de medicações de alto custo em outras cidades, para evitar que as pessoas venham ao centro da cidade do Rio de Janeiro, para obter Hidroxiureia. Outra dica para as famílias é pedir ao médico um atestado para vir ao Hemorio. Com o atestado em mãos, as empresas de ônibus têm a obrigação de  liberar a passagem”.

O Hemorio também atua na conscientização e educação das famílias, para que possam planejar o acompanhamento e organizar o cuidado, tarefa para toda a vida. A organização disponibiliza vários materiais. Veja aqui: 

Manuais traço falciforme

Meu bebê tem doença falciforme: o que fazer?

Apesar de todas essas iniciativas, Dr. Luiz entende que “Ainda é  insuficiente”. A sobrecarga para as famílias e as complicações da doença são muitas, exigindo todo e qualquer apoio que possa ser oferecido.

Para ele, “A parceria com Dara é única. Não conhecemos outra organização social que faça o mesmo trabalho com as famílias que têm pessoas com doença falciforme, especialmente crianças. A gente agradece muito ao Dara. Pacientes e médicos só tem palavras de elogio. É um trabalho fantástico que a organização faz por essas pessoas que enfrentam muitos problemas”.

Políticas Públicas

Em 2015, um marco importante foi alcançado com a criação da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias, um passo crucial para garantir o acesso universal ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento adequados para os pacientes.

No entanto, a luta por justiça e igualdade ainda não acabou. Em 2019, foi arquivado e rejeitado o Projeto de Lei 9982/18, que propunha reconhecer a Doença Falciforme como deficiência. Outro projeto de lei em tramitação, o de número 1301/23, já aprovado pela Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, também busca garantir importantes benefícios para os portadores da doença, como o acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC).

As entidades que lutam pela causa da Doença Falciforme reivindicam, além do reconhecimento legal da doença, medidas concretas para garantir a qualidade de vida dos pacientes. Entre as principais demandas estão:

  • Prioridade no atendimento em serviços públicos: visa reduzir o tempo de espera por consultas, exames e internações, diminuindo o sofrimento dos pacientes e otimizando o uso dos recursos públicos.
  • Acesso a programas de moradia: A moradia digna é um direito fundamental para todas as pessoas, e os pacientes com Doença Falciforme, que frequentemente enfrentam dificuldades financeiras devido aos custos com tratamento, não devem ser excluídos desse direito.
  • Medidas de inserção no trabalho: A Doença Falciforme pode trazer limitações físicas e exigir afastamentos do trabalho para tratamento. Políticas públicas que facilitem a reinserção no mercado de trabalho são essenciais para garantir a autonomia e a dignidade dos pacientes.

A luta pela visibilidade e pelos direitos das pessoas com Doença Falciforme é uma luta contra o racismo estrutural na saúde. É fundamental que a sociedade se conscientize sobre essa doença e apoie as iniciativas que visam garantir o acesso universal ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento adequados, além da promoção da qualidade de vida dos pacientes.

Juntos, podemos construir uma sociedade mais justa e igualitária, onde todas as pessoas tenham acesso a informações corretas e à saúde de qualidade.

Array