Artigo originalmente publicado no site do Instituto Desiderata em novembro de 2024.
O que define o acesso à saúde no Brasil? De imediato, a resposta poderia dividir a população em dois grupos: aqueles que têm somente o Sistema Único de Saúde (SUS) para buscar atendimento e os que podem recorrer à rede privada, principalmente por meio dos planos de saúde, sejam eles pagos por meios próprios ou pelos empregadores.
Mas esse seria um olhar muito simples, principalmente se considerarmos que somos um país de herança colonial e escravocrata, e que, após o processo de abolição, viveu sob a ilusão de uma democracia racial. Além de relatos, muitos estudos nos ajudam a compreender que o racismo existe, ainda é parte da estrutura da sociedade brasileira e atravessa também o acesso à saúde da população negra (pretos e pardos).
No ano de 2020, a Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo Ministério da Saúde com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou que sete em cada dez brasileiros faziam parte do grupo que depende da saúde pública. Também dados do IBGE mostram que, dentro desta maioria que recorre a SUS, 76% dos atendimentos e 81% das internações são realizados pela população negra.
Estes levantamentos nos trazem uma outra possível resposta à primeira pergunta sobre o que define o acesso à saúde no país. A cor da pele precisa ser considerada. Como maioria da população (56%) e maioria na linha da pobreza (73%) é também a população negra que mais depende de uma saúde pública. Nise Santos, mulher negra, enfermeira antiproibicionista (que defende a pauta das drogas como questão de saúde pública e assistência social), da luta antimanicomial e defensora do SUS explica que, para falar de acesso à saúde também precisamos considerar três fatores.
“Ter o serviço de saúde no local não garante que as pessoas irão até ele. Para acessar o serviço você precisa de condições materiais e financeiras, de transporte, de ter uma rede de apoio para deixar pessoas de quem você cuida, ou de uma dispensa no trabalho, o que é difícil. Além disso, o acesso também depende da informação, tanto sobre a necessidade de saúde, sobre quanto aquele serviço vai ser eficaz para resolver a questão. E, por último, o acesso também depende da relação, da qualidade do atendimento que as pessoas vão ter. Se eu passo por uma humilhação, ou espero muito, ou que nada do que foi feito resolveu minha questão, é provável que eu não volte. Acesso envolve todas essas questões”, explica Nise.
Saúde infantil determinada pelo racismo
Os dados sobre pobreza e saúde da população negra vão se refletir diretamente nas crianças pretas e pardas. Viver em vulnerabilidade, em muitos casos, significa ter também menos acesso a saneamento, água tratada para uso e consumo, boas condições de higiene e alimentação adequada. Na primeira infância, este cenário aumenta os riscos de mortalidade.
Um estudo da Fiocruz, divulgado em 2019, mostrou que crianças negras têm 39% mais chances de morrer antes dos 5 anos de idade. Além disso, as chances de que o óbito seja por pneumonia é 78% maior em crianças pretas na comparação com as brancas. A diarreia (72%) aparece como segunda causa, seguida da má alimentação, que atinge duas vezes mais as crianças pretas. Todas essas causas são consideradas evitáveis quando se tem acesso aos direitos básicos de moradia e saúde.
Antes mesmo do nascimento, a condição dessas crianças já está determinada também pela situação de vulnerabilidade vivida pelas mães. Nesta mesma pesquisa, 52% das mulheres pretas e 43% das pardas eram solteiras, aumentando as chances de uma maternidade solo, e 26% dessas mulheres negras estavam gerando o quarto filho. Em relação ao acompanhamento da gestação, 11% das pretas e pardas fizeram metade dos atendimentos recomendados para o pré-natal, índice que entre as mulheres brancas fica em 5%.
Além do acesso, a qualidade
O SUS existir há 34 anos é motivo de celebração, mesmo com as conhecidas limitações de estrutura. Graças a ele temos, por exemplo, ampla cobertura vacinal da população e, também por causa dele, a maior parte da população negra não está completamente descoberta em relação aos serviços de saúde.
Ainda assim, existem as questões subjetivas, que afetam tanto quem busca atendimento na rede pública quanto na rede privada, e o racismo é uma delas. Constatado por relatos e pesquisas, ainda é um grande obstáculo quando se fala da qualidade da saúde para brasileiros pretos e pardos.
A violência obstétrica é um exemplo. O estudo “Nascer no Brasil 2”, realizado pela Fiocruz em 465 maternidades brasileiras, mostrou que mulheres negras e pobres têm maiores chances de sofrer com as dores do parto sem suporte adequado e de ouvir comentários constrangedores e humilhantes na hora do nascimento dos filhos.
“Embora a população negra seja aquela que mais utiliza o SUS, ela também é a que tem mais dificuldade em acessar. Sabe-se, por exemplo, que pessoas negras no sistema de saúde são mais vulneráveis a receber um atendimento onde as queixas são desvalorizadas, onde há negligência por parte dos profissionais de saúde, onde se dá pouco valor tantos aos sintomas, como ao quadro de saúde. Também devido ao racismo, as pessoas negras estão expostas ao diagnóstico e ao tratamento de forma tardia”, afirma Nise Santos.
Políticas públicas antirracistas
Em 2009, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). De acordo com a enfermeira Nise Santos, que também é mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Pernambuco, essa política foi viabilizada após muita atuação do movimento negro, principalmente a partir dos anos 1990, com destaque para a Marcha Zumbi dos Palmares, realizada no dia 20 de novembro de 1995. Daí em diante, foi criado um grupo de trabalho interministerial para valorização da população negra, com um subgrupo focado na saúde. Em 2001, a política começa a ser concebida, mas foi aprovada somente em 13 de maior de 2009.
Hoje, em 2024, ainda não há uma aplicação plena da PNSIPN. O Boletim Epidemiológico da População Negra de 2023 mostrou que somente 32% dos municípios brasileiros aderiram à Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Apesar disso, Nise destaca avanços a partir dela.
“Essa política parte do reconhecimento do racismo institucional como determinante social das condições de saúde. Isso é muito importante. Todas as estratégias de gestão para melhoria da saúde da população negra vão dialogar com esse reconhecimento. Um dos avanços que essa política traz, sem dúvida, é o fortalecimento da atenção à saúde para doenças prevalentes entre pessoas negras. Essa política vai dar pressão para a ampliação de programas na Atenção Primária e na média complexidade naqueles adoecimentos que são prevalentes nas pessoas negras, como a hipertensão e a diabetes. No geral, a política vai provocar o aumento de pesquisas e como melhorar o diagnóstico e o tratamento”, aponta Nise.
E para que as políticas públicas sejam formuladas e aplicadas, a informação é fundamental. Muitas vezes, lacunas no preenchimento de dados sobre pacientes nos sistemas de informação do SUS dificultam esse olhar mais apurado. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra também foi importante para estabelecer os dados sobre raça/cor como obrigatórios nos instrumentos de coleta desses dados. Eles são essenciais para o enfrentamento do racismo estrutural que amplia desigualdades e define o processo de saúde-doença da população negra desde o nascimento, como destaca Ana Morato, diretora Programática do Instituto Desiderata.
“Somente com dados que verdadeiramente representem nossa população podemos entender as realidades diversas e fortalecer políticas públicas que realmente promovam igualdade. Além disso, adotar um olhar racializado em nossas práticas de saúde é um convite para escutarmos, com empatia, as histórias de quem, muitas vezes, foi silenciado. Ao compreender as especificidades da nossa população negra, estamos não só aprimorando o cuidado, mas também contribuindo para um futuro mais justo e inclusivo para todos”, destaca.