Entrevista realizada por Patrícia Santos com Macaé Evaristo, originalmente publicada na Revista Periferias 4 – educação pública: potências e desafios

Patrícia SantosConhecemos sua trajetória de educadora, secretária de educação de Belo Horizonte e do estado de Minas Gerais, na SECADI – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – do Ministério da Educação (MEC). Você também foi professora no Curso de Magistério Intercultural Indígena, tendo coordenado o Programa de Implantação de Escolas Indígenas do Estado de Minas Gerais. Traçando um paralelo com sua trajetória, o que você pode destacar para pensarmos a potência da escola pública no Brasil?

Macaé Evaristo: O tema desta edição é muito importante para mim, que dediquei minha vida à educação. Para falar da escola pública, tenho sempre de falar da minha mãe, que criou quatro filhas e ficou viúva quando eu tinha 10 anos de idade. Ela tinha um projeto para esse núcleo familiar, em uma cidade do interior de Minas Gerais, onde a população negra era minoria. Nessa circunstância, um projeto para uma família negra, exclusivamente de mulheres, tem tudo para ser um projeto de submissão e subserviência. Mas o projeto da minha mãe não foi esse, mas, sim, o de transformar nossas vidas a partir da educação.  Sempre se dedicou muito à trajetória escolar das quatro filhas. Tanto que todas temos formação superior, algumas com mestrado concluído, outras em andamento. A minha porta de entrada para o mundo profissional foi pelo magistério. Trabalhei em escolas de periferia como forma de chegar à universidade. Fiz concurso público e com 19 anos já era professora da rede pública de Belo Horizonte.

E o que penso sobre a escola pública? Que o racismo estrutural da sociedade brasileira privou o acesso à educação para a maioria do povo ao longo de todo século XX. Na realidade, apenas conseguimos universalizá-la para a população de 6 a 14 anos no final da década de 1980, início de 1990. E, nessa democratização, com a chegada dos negros, dos pobres e favelados, começa o discurso desqualificador da escola pública. A gente sempre vê pessoas se referindo à escola pública de antigamente como boa, e a atual, como se ela tivesse perdido a qualidade.  Tentam desqualificar, na verdade, os sujeitos que conseguem chegar à escola pública, que somos nós – negros, mulheres, pessoas da periferia e do campo, as comunidades quilombola e indígena. É uma estratégia bastante sofisticada, na tentativa de escravizar e subjugar a população preta e empobrecida que chega à escola pública, inclusive nas universidades, após a Lei de Cotas de 2012.

“Um projeto para uma família negra, exclusivamente de mulheres, tem tudo para ser um projeto de submissão e subserviência. Mas o projeto da minha mãe não foi esse, mas, sim, o de transformar nossas vidas a partir da educação.”

 

Por outro lado, é preciso reconhecer que a escola pública salva muitas vidas. São muitas trajetórias, como a minha, em que a escola pública possibilitou melhor compreensão sobre o lugar que nos situamos nesta sociedade.  Sempre defendo um projeto educativo de uma escola democrática, como o próprio Paulo Freire dizia: “a leitura de mundo precede a leitura da palavra.”

Eu defendo uma escola que possa me recolocar nesse mundo para que eu possa falar de mim, da minha memória, de ancestralidade e de todo o potencial que temos.  A periferia não é o território apenas da ausência, da falta. É neste lugar que querem nos colocar: aqueles sem família, sem memória e sem história. Essa é a narrativa do dominador, relembrando novamente Paulo Freire, daqueles que querem nos oprimir. Nessa narrativa não podemos embarcar.

Considerando a sua história e esses momentos em que você esteve na Secretaria municipal e estadual, ou mesmo no MEC, sendo você  uma mulher preta, forte, que traz em sua trajetória essa demanda de um universo feminino e de reconhecer o valor da escola pública, como era lidar com todo esse contexto? Imagino que eram várias as contradições. 

É bom lembrar que enfrentamos racismo em todos os momentos. Ser diretora, secretária de educação ou professora não nos elimina do universo de um racismo estrutural, de um machismo estrutural.  Fui a primeira secretária de educação negra de Belo Horizonte e no estado de Minas Gerais e, também, no MEC.  Fui a primeira, mas não quero ser a única.  Falamos do racismo estrutural, mas devemos entender também que os lugares de poder, para nós, negros, muitas vezes são solitários. Nós temos, cotidianamente, cobranças que pessoas não negras ou homens, simplesmente não recebem.

“Falamos do racismo estrutural, mas devemos entender também que os lugares de poder, para nós, negros, muitas vezes são solitários. Nós temos, cotidianamente, cobranças que pessoas não negras ou homens, simplesmente não recebem”.

Por estar nesses lugares, me cobro muito. O Estado brasileiro é patrimonialista e sempre funcionou para alguns grupos.  Construir qualquer política que rompa com grupos sociais que sempre tiveram prioridades, é um embate constante. Desde adquirir um kit de literatura afro-brasileira para bibliotecas escolares até implementar bolsa permanência para estudantes pretos, pardos e indígenas na Educação Superior, tudo requer um enfrentamento permanente na desconstrução das estruturas sempre comprometidas com a lógica racista.  Fui acusada, quando fui secretária, por setores na câmara de vereadores, de fazer proselitismo religioso, porque a Prefeitura de BH dotava as escolas de material pedagógico para a implementação da Lei 10639/2003.

Hoje, esse embate é ainda mais forte, porque temos segmentos dentro do legislativo que são, na realidade, intolerantes não somente com religiões de matrizes africanas, mas sobretudo com o povo negro. Temos de lembrar que Educação é dever do Estado. Mesmo a escola privada precisa de uma autorização para seu funcionamento.

Eu também atuo na formação de professores de escolas privadas. Sei como os dados são camuflados, negados. Muitos educadores de escola privada têm falado dos desafios de lidar com uma infância e uma juventude que estão fragmentadas. Lidam com situação de autoextermínio, estudantes que se mutilam.  Muitas vezes isso é silenciado dentro dessas instituições ou o aluno é banido.

Lutar por escolas democráticas é lutar pela escola de todos, e isso não vale só para a rede pública, mas também para a rede privada. Nossa responsabilidade é com a formação plena da infância e da juventude, valendo para toda e qualquer escola. É uma ilusão entrar nessa dicotomia ou rivalizar professores de escola pública com aqueles da rede privada. Somos todos trabalhadores da educação. As escolas privadas, muitas vezes, optam por um modelo de segregação e criam jovens que mal sabem circular nas suas cidades, seja no Rio de Janeiro ou em Belo Horizonte. Sem nenhuma ideia do que é a vida real, sem conseguir construir empatia, sem saber dialogar com o diferente. A ideia da escola como lugar da convivência democrática está ameaçada. A destruição da escola pública, não sejamos ingênuos, a quem interessa?

Como é pensar a pluralidade cultural no espaço da escola pública, considerando a experiência das escolas indígenas em Minas Gerais e os movimentos sociais, incluindo os movimentos secundaristas? 

Primeiro, quer seja para a população indígena ou quilombola, para a juventude, as mulheres, para o campo ou para a cidade, não se faz política sem participação popular.  A máxima “nada sobre nós sem nós” é verdadeira. O Estado brasileiro precisa criar espaços de participação política. Sempre tivemos, em Belo Horizonte, por meio do Conselho Municipal de Educação e outras instâncias de participação popular, diálogo constante com os mais diversos movimentos sociais. Na Educação Escolar Indígena, tínhamos um Conselho com participação de lideranças de todas as etnias.

Todo o programa foi estabelecido com as comunidades participando do processo. Inclusive o programa pertence às comunidades e, não, ao governo, já o que o Programa de Implantação de Escolas Indígenas foi uma parceria da Secretaria de Estado de Educação, a Universidade Federal de Minas Gerais, o Instituto Nacional de Florestas e a Funai, com participação das comunidades na coordenação.

Tínhamos, vinte anos atrás, aldeias sem sequer um adulto alfabetizado. O curso de formação de professores indígenas foi a primeira ação e passou por um processo de escolha dos professores, em cada um dos territórios nas suas diferentes aldeias. O povo Xakriabá tinha, na época, 7 mil habitantes no município de São João das Missões, distribuídos em mais de 30 aldeias.  Participei dos processos de escolha dos cursistas, aldeia por aldeia. Vivi coisas impressionantes. Nesse conceito de democracia que vivemos, em que se vota e a maioria ganha, tudo parece se dar por resolvido. Aprendi com os Xakriabá outras formas.

“Quer seja para a população indígena ou quilombola, para a juventude, as mulheres, para o campo ou para a cidade, não se faz política sem participação popular.  A máxima ‘nada sobre nós sem nós’, é verdadeira.”

As assembleias duravam um dia inteiro, não com simples votação, em que um lado ganhava, outro perdia e se aceitava o resultado, mas, sim, com uma ideia de como fazer mais justiça. Fazer um curso de magistério em comunidades indígenas significa além do acesso à escolarização, gerar trabalho e renda, que precisam ser distribuídos com justiça. Assim, não era considerado critério de justiça ter mais de um professor ou professora por família. A escola também era, e continua sendo pensada, como um dispositivo que não pode adentrar uma comunidade e criar desigualdade econômica.

Hoje, já se oferece Ensino Médio na aldeia Xakriabá, temos também pessoas fazendo Odontologia, Medicina, tem prefeito que vem de lá.  Veja como isso mudou em 20 anos, quando ninguém da aldeia era sequer alfabetizado.  Isso é muito expressivo. Para mim, isso é aprender a dialogar.  Participar do programa de implantação de escolas indígenas foi um exercício maravilhoso que me permitiu conhecer mais o nosso próprio País.

Os Xakriabá são um povo e os Pataxó outro, completamente diferente, mas quando se fala em populações indígenas, tratam como se fossem todos iguais. É um aprendizado constante, são diferentes povos, cosmologias, formas de relação com o mundo, formas de se relacionar com crianças, formas de lidar com a alimentação. Um exemplo que acho maravilhoso: para o povo Maxakali, não existe a possibilidade de uma pessoa comer e outra não.  Porque o alimento é distribuído e é um bem coletivo. Uma população que vive em situação de extrema pobreza, quando chega o alimento, imagine se as crianças vão comer e os adultos não? Não tratam a alimentação desacompanhada da distribuição.

Isso me fez pensar outros contextos, inclusive repensar o olhar homogêneo para as favelas e periferias, como se fossem únicas.  Precisamos entender que as populações que estão nas nossas periferias urbanas têm matrizes, memórias, histórias, trajetórias de muitas comunidades provenientes do campo. São experiências que não deixam de existir porque estamos em uma área urbana.

“Na Educação Escolar Indígena, tínhamos um Conselho com participação de lideranças de todas as etnias. Todo o programa foi estabelecido com as comunidades participando do processo. Inclusive o programa pertence às comunidades, e não ao governo”.

Trabalhei no Cafezal, favela de Belo Horizonte, por muitos anos, como professora. Lembro-me da primeira vez que teve pera na merenda escolar. As crianças pediam que partíssemos a fruta, e quando perguntávamos o porquê, respondiam que queriam levar para o irmão, para mãe.  Porque se é algo que não tenho na minha casa, vou comer sozinho? Não! Minha mãe também tem de participar dessa experiência, meu irmão também. As favelas têm uma experiência de solidariedade e de reciprocidade, que é o que nos mantém vivos.

Nas últimas décadas, criou-se o seguinte mito no Brasil, que certamente se estende a outras realidades, sobretudo na América Latina: “a escola pública não consegue ensinar nem o estudante consegue aprender.” A escola privada, por sua vez – para onde migraram as classes médias, passou a ser considerada, em geral, como expressão de qualidade e superioridade, em particular por causa dos resultados alcançados nos exames de acesso às universidades.  Quais marcos você destacaria sobre a construção do mito do fracasso escolar e superioridade, na totalidade, da escola privada em relação à pública?

O ponto inicial da desqualificação são as pessoas que estão na escola pública. Como não somos vistos como sujeitos de direitos, tudo que é feito nas nossas comunidades supostamente não tem qualidade. Desqualificam a infância, a juventude, a escola pública e seus profissionais. Sempre como reiteração do projeto da elite escravocrata brasileira. Dada a ausência de política públicas por garantir dignamente escolas, unidades básicas de saúde, centros culturais, fruição cultural, surge todo esse discurso de desqualificação. E ter esse discurso conservador é um álibi para dissimular a expropriação do orçamento público da população que mais precisa. Pois a elite acha que os fundos do Estado têm de ser cada vez mais direcionados para o próprio enriquecimento. Aqueles que falam da não qualidade são os mesmos que dizem que professores ganham muito. Congelaram o orçamento da educação pelos próximos 20 anos, acabaram com o piso salarial dos professores, enterraram o Plano Nacional de Educação, entre outras aberrações. Acham que na escola basta ter Língua Portuguesa e Matemática, fecham turmas de EJA, reduzem drasticamente a Educação Integral, como vem ocorrendo no “Novo” governo de Minas.

“O ponto inicial da desqualificação são as pessoas que estão na escola pública. Como não somos vistos como sujeitos de direitos, tudo que é feito nas nossas comunidades supostamente não tem qualidade. Desqualificam a infância, a juventude, a escola pública e seus profissionais.”

Outra questão estrutural dessa lógica de atuação e dessa política, e com uma perversidade ainda maior, é termos segmentos que acham natural o extermínio da população negra. Nós estamos lutando contra grupos semelhantes aos eugenistas, do início do século XX, grupos cuja política de Segurança é metralhar as comunidades e periferias, assassinar crianças. Assim como acham que colocar 45 ou 50 jovens numa sala de aula é perfeitamente adequado para a oferta de educação pública de qualidade. Querem tirar qualquer chance de dignidade das pessoas nesses espaços.

Também preciso dizer que apesar da perspectiva dura de análise desse quadro, eu também tenho uma alegria muito grande.  A alegria é nossa resistência. Nós sobrevivemos há mais de 500 anos de massacre e exploração, em situações mais adversas do que essas que vivemos hoje.  Atualmente, a gente se conecta no Brasil inteiro. Nós estamos dispostos a enfrentar. Em Minas Gerais, estamos construindo um movimento inspirado numa frase de Conceição Evaristo: “Eles combinaram de nos matar, mas a gente combinamos de não morrer”.  Esse combinado vem de muito longe e, no entanto, estamos aqui, firmes e vigorosas, e vamos defender cada vida.

Ao falar em enfrentamento, é preciso entender que não estamos sozinhas.  Não se trata de indivíduo. Não se chega a esses lugares sozinhos. São coletivos. Da mesma forma, por exemplo, se faz política da educação escolar indígena. Para criar as primeiras escolas indígenas em Minas Gerais, formar os primeiros professores indígenas, nós enfrentamos disputas com municípios, que muitas vezes estavam lidando com interesses de latifundiários. São interesses econômicos que combatem, muitas vezes, ideias da escola indígena e da escola quilombola. Recebi, no MEC, por exemplo, em audiência, pedidos para não que não se criasse mais nenhuma escola quilombola em um determinado estado, pois quando se institui uma escola como quilombola, a escola se reconhece e assim se declara no censo escolar. E fica muito mais difícil para determinados setores que querem a expropriação das terras dessas comunidades negar sua existência. Uma escola quilombola indica que ali há uma resistência história, uma coletividade, um território em disputa, que exige seu reconhecimento identitário, em luta contra uma cultura política patrimonialista.

Dada a ausência de política públicas por garantir dignamente escolas, unidades básicas de saúde, centros culturais, fruição cultural, surge todo esse discurso de desqualificação. E ter esse discurso conservador é um álibi pra dissimular a expropriação do orçamento público da população que mais precisa.”

A construção de políticas identitárias não é contrária à democracia, mas estrutural para seu exercício. Na educação isso é fundamental, já que ficamos por muito tempo silenciadas. Se pensarmos que, nos últimos 30 anos, mais de 30 mil escolas foram fechadas no campo, é muito ameaçador fazer uma política de fortalecimento das escolas do campo, fazer uma política, por exemplo, de apoio à agricultura familiar, para que a alimentação escolar tenha 30% de aquisição proveniente dos pequenos agricultores.

Lidamos com interesses da indústria alimentícia, interesses internacionais, do que se oferece como alimento. Fazer política é enfrentar isso o tempo todo. Em Belo Horizonte, ao construirmos creches em determinados bairros, ao invés de o Executivo decidir onde construí-las, essa escolha se dava pelo Orçamento Participativo, em que comunidades locais decidiam suas prioridades. Não foi sempre assim. Os primeiros grupos escolares da cidade, por exemplo, foram todos construídos na lógica do centro para a periferia.  Quando chega na periferia, as instalações têm menor estrutura e/ou são precárias, improvisadas. Como disse Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto.” Mas é possível enfrentá-lo…

Há paradigmas em disputa: segregação ou convivência democrática. Quem cabe nesse “todos” da nossa democracia? Nós podemos existir dentro desse todos? Certos grupos acham que a gente não cabe, que mulheres não cabem, que os negros não cabem, que os indígenas, os homossexuais não cabem.

“Outra questão estrutural da lógica de atuação e dessa política, e com uma perversidade ainda maior, é termos segmentos da sociedade que acham natural o extermínio da população negra.”

No começo de setembro, o governo federal anunciou o programa nacional das escolas cívico-militares, com a implementação prevista de 216 colégios até 2023.  Apresentou a escola cívico-militar como um ambiente de parceria e de maior vínculo entre gestores, professores, militares, com disciplina na escola, com tutela de militares. É um discurso em que o governo federal atribui suposto potencial para a escola pública, embora não reconheça nesse modelo a valorização da diversidade, das pluralidades, o livre arbítrio, livre pensamento e práticas emancipatórias que possam contribuir para o fortalecimento de um ambiente mais democrático, o que tem a ver  com tudo que conversamos e que, de certa forma, condiz com a complexidade dos desafios da educação. O próprio presidente aludiu ao conhecimento e ensino como saída para miséria, pobreza e ignorância, por mais incoerente que pareça. Chegou até a afirmar: “o que nos tira da miséria, da pobreza e da ignorância é o conhecimento, é o ensino”, após assinar o decreto que cria esse programa. O que você vê de contraditório e quais são os limites desse modelo de escola cívico-militar?

Me lembro de uma matéria que saiu no Jornal O Globo, em 2015, “Polícia assume escolas militares em Manaus”, e assim diziam na chamada: “Alunos usam farda  e batem continência, apenas naquele ano, expulsaram cinco, mas o Ideb, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, tinha melhorado.” Meninos não podiam usar boné e as meninas negras de cabelos crespos tinham de andar sempre com os cabelos amarrados. Essa ideia começou em Manaus e alguns governos do Centro-Oeste começaram a entregar a gestão de escolas, principalmente a das periferias, para a gestão militar.

Para mim, a primeira contradição é: nós temos um sistema de segurança pública no Brasil que não funciona. Se a Polícia Militar não consegue resolver nem a questão de segurança pública, que dirá a da educação. A segunda contradição, do ponto de vista de pensar a formação humana em sua totalidade, é que esse modelo definitivamente não dá conta. Em contraposição a essas escolas cívico-militares, faz muito mais sentido pensar em escolas democráticas, de tempo integral, em que os alunos tenham a possibilidade de pensar a cidade e o território como experiência educativa e não como um olhar da falta e da periculosidade dos territórios. O que está na essência dessa política é olhar para essas favelas e periferias como se fôssemos todos monstros e bandidos, um lugar onde as pessoas não trabalham, não produzem, não têm civilidade.

“Em contraposição a essas escolas cívico-militares, faz muito mais sentido pensar em escolas democráticas, de tempo integral, em que os alunos tenham a possibilidade de pensar a cidade e o território como experiência educativa e não como um olhar da falta e da periculosidade dos territórios. O que está na essência dessa política é olhar para essas favelas e periferias como se fôssemos todos monstros e bandidos, um lugar onde as pessoas não trabalham, não produzem, não têm civilidade.”

Como se essa turma fosse capaz de levar a civilidade a esses supostos despossuídos. Concordo com o professor Miguel Arroyo, quando afirma que “não são as infâncias que são violentas. Elas são sim violentadas pela sociedade, pela pobreza, pelas favelas, pelas desigualdades sociais, de raça, gênero e isso chega às escolas.”

Também por isso, houve  a imediata extinção da SECADI/MEC, uma Secretaria que estava formulando políticas para a redução das desigualdades populacionais, voltadas para estudantes negros, indígenas, quilombolas, do campo, das periferias urbanas, jovens pobres, pessoas com deficiência, numa perspectiva de fortalecimento desses grupos e comunidades, com foco na memória, na história, nas línguas, no caso das populações indígenas e, consequentemente, no fortalecimento de seus territórios.  Eles acabam com a SECADI e vêm com essa ideia de implementação de escolas cívico-militares. 

Eu queria também fazer uma distinção das escolas cívico-militares para o que temos hoje em vários estados do Brasil, que são escolas que existem dentro de uma linha política de assistência ao militar, voltadas para filhos de militares.  Ainda que eu discorde dessa agenda, há toda uma história na estrutura da corporação de colégios para filhos de militares. Mas vejam que o que está sendo proposto é de outra natureza, é uma escola cívico-militar nas favelas e periferias, muitas vezes como elemento repressor e de contenção dos corpos.

Vamos lembrar que, na nossa história, as crianças negras, no final do século XIX e início do século XX, foram proibidas de frequentar escolas. Uma pessoa negra só podia frequentar a escola se tivesse mais de 14 anos, no período noturno, e se o professor aceitasse. Carolina Maria de Jesus, em Diário de Bitita diz assim: “nas fazendas não havia escolas, o que havia era enxada em abundância.” Hoje temos uma nova tentativa de conter, reprimir e domesticar os corpos negros por meio de escolas cívico-militares. 

Li um artigo no blog do Freitas mostrando como esse formato de escola funcionou nos Estados Unidos e de como acabou sendo um trampolim, um rito de passagem das crianças pretas e pobres direto para os presídios.  Não à toa os Estados Unidos têm a maior população carcerária do mundo, porque é a forma de segregação e de contenção. O Brasil sempre olha para nós – a população negra e indígena – como se fôssemos estrangeiros do nosso próprio país, imigrantes, usurpadores. Portanto, precisamos dizer para esses gestores que o cerne da escola pública está no exercício da convivência democrática, além do acesso ao conhecimento e da democratização dos saberes. A possibilidade da convivência, da experiência da convivência com o outro nesse espaço público, é fundamental para fazermos uma sociedade que reconheça suas próprias diferenças, e que consiga conviver. 

“Precisamos dizer para esses gestores que o cerne da escola pública está no exercício da convivência democrática, além do acesso ao conhecimento e da democratização dos saberes.”

Diante de toda sua impactante trajetória, quais são os desafios mais urgentes para pensar a escola pública hoje? Não somente em nível nacional, mas na América Latina também. 

Primeiro, que essa ofensiva conservadora contra a educação não acontece só no Brasil.  Também a vemos em diferentes países – uma ofensiva muito forte contra a educação e contra a escola pública, ao menos contrária a esse conceito de escola pública democrática que entendemos e propomos. Para a agenda política, nossos desafios são: a retomada do Plano Nacional da Educação, a revogação da Emenda Constitucional 95/2016, que congela investimentos para educação.

Quando falo do Plano Nacional, falo de expansão da Educação Infantil, da Educação Integral, de recursos para universidades, pesquisa, Ensino Médio e tecnológico.  Educação é uma obrigação que o Brasil não cumpriu ao longo de todo o século XX. Estávamos começando a cumpri-la no início do século XXI e essa agenda está sendo brutalmente interrompida junto a outras políticas sociais, como a política de assistência social e de cultura. Ambas foram completamente estilhaçadas.

Para nós, que militamos nessas áreas, o desafio é não perdermos a capacidade de articulação e de mobilização.  Necessitamos de um estado de mobilização permanente, de fortalecimento de nossas estratégias e locais de resistência.  Às vezes, falam que não estamos conseguindo dar respostas, mas penso sempre que nosso movimento é como a floresta, se olhamos de cima parece que está tudo parado, mas por dentro ela está sempre em movimento. Isso aprendi com os Tikuna.

“Para a agenda política, nossos desafios são: a retomada do Plano Nacional da Educação, a revogação da Emenda Constitucional 95/2016, que congela investimentos para educação. Quando falo do Plano Nacional, falo de expansão da Educação Infantil, da Educação Integral, de recursos para universidades, pesquisa, Ensino Médio e Tecnológico.”

Mulheres têm se organizado em vários níveis, assim como o movimento negro e o movimento indígena. Estamos ocupando as ruas, fazendo marchas… Essa é a nossa história, foi assim que a gente foi transformando o Estado brasileiro.  Nosso desafio é permanecer com esse espírito guerreiro da nossa ancestralidade, não termos medo e ocupar todos os espaços, o que sempre fizemos. E, lembrando da Leila Gonzalez, sobre a questão das mulheres e das mulheres negras, eu fico muito feliz por ver, em todo evento público que eu participo, as mulheres negras ocupando a cena política, ocupando a cena pública.  Isso é uma coisa maravilhosa. Quando estou em alguma Mesa de Debate e ouço “porque sou uma docente negra”, “eu me formei pelo Prouni”, “eu entrei pelas cotas”, “eu estou fazendo mestrado”, “eu sou doutora” – isso pra mim é motivo de orgulho e de honra e, ao mesmo tempo, me dá energia para acreditar que a democracia vencerá. 

E por que você, que passou por todos esses lugares como professora e atuando no executivo, resolve passar a disputar uma cadeira no legislativo?  

A minha história e a conjuntura atual do Brasil me desafiam a disputar uma cadeira legislativa. Se nós, mulheres negras, temos cada vez mais consciência da importância de ocuparmos diferentes espaços, percebemos também o quanto continuamos excluídas dos espaços de poder, seja na esfera privada ou no setor público. Se o poder legislativo é o espaço de representação política, é desejável que na sua composição estejam contemplados a diversidade que compõe a nossa sociedade, ou seja, mulheres, negros, indígenas, pobres, deficientes físicos, enfim, um espaço plural. Mas o legislativo, para nós, mulheres negras, ainda é espaço de exclusão.

Numa sociedade machista e racista como a nossa, muitos ainda acreditam que a política não é lugar para mulheres, por exemplo. Temos muita dificuldade de chegar e permanecer nesses lugares, seja por questões econômicas, misoginia, assédio ou por uma cultura que reduz o trabalho da mulher à esfera doméstica ou familiar.

Eu participei, como gestora e professora, das conferências municipais, estadual e nacional que estabeleceu as diretrizes e metas para o Plano Nacional de Educação (2014-2024). Com muita luta conseguimos aprová-lo dentro do Congresso. Vi que várias pautas, ao chegarem no âmbito municipal ou estadual, e cito Minas Gerais como exemplo, foram bombardeadas nos legislativos, alavancados pelo movimento “escolas sem partido” aliados a setores conservadores avessos a qualquer pauta ligada à diversidade, às questões indígenas, quilombolas, de diversidade sexual e a toda e qualquer discussão de gênero.

“Numa sociedade machista e racista como a nossa, muitos ainda acreditam que a política não é lugar para mulheres, por exemplo. Temos muita dificuldade de chegar e permanecer nesses lugares, seja por questões econômicas, misoginia, assédio ou por uma cultura que reduz o trabalho da mulher à esfera doméstica ou familiar.”

Outro exemplo são os conselhos de direitos: da criança e do adolescentes, dos idosos, da educação, da saúde, da cultura.  Lutamos muito para a existência desses conselhos, para construir, entre outros mecanismos de defesa, o Estatuto da Criança e do Adolescente, construir a doutrina da proteção integral e nós, muitas vezes, mulheres e mulheres negras não nos colocamos como possibilidade para nossas comunidades, em um País que está assassinando a infância e a juventude.

Como abrimos mão e não cuidamos de espaços tão importantes como esses, que conseguimos construir com muita dureza dentro do sistema de garantia de direito para a infância? Essa participação, nessas instâncias, seja no legislativo ou nos conselhos populares é muito importante. E a primeira coisa que o atual governo fez foi acabar com todos os conselhos, pois sabe que a participação popular faz a diferença na construção política e mudou a vida das pessoas pelo País afora. Fez diferença na educação, na saúde, na assistência social.  Veja, nós saímos de 300 mil matrículas de crianças com deficiência nas escolas públicas, em 2003, para 700 mil matrículas em 2013/2014.  Depois de anos de luta nessa perspectiva de construirmos acessibilidade e inclusão, olha o que eles querem retomar, a ideia de clínica-escola, como se não houvesse um saber da educação, da pedagogia, para essas crianças.  Elas novamente têm de ficar segregadas e apartadas do conjunto da sociedade.

Hoje, o que percebo é que muitos grupos conservadores têm se apropriado do legislativo, o que me faz desejar que nossa voz seja ouvida, respeitada e se torne fundamental para os avanços que almejamos. Nas palavras de Conceição Evaristo, “a minha voz ainda ecoa versos perplexos, com rimas de sangue e fome.”  Disputar os espaços de decisão política é, antes de tudo, nossa obrigação.

“Os conselhos de direitos, da criança e do adolescentes, dos idosos, da educação, da saúde, da cultura. Lutamos muito para a construi-los, assim como outros mecanismos de defesa, o Estatuto da Criança e do Adolescente, construir a doutrina da proteção integral e nós, muitas vezes, mulheres e mulheres negras não nos colocamos como possibilidade para nossas comunidades, em um País que está assassinando a infância e a juventude.”

A entrevista foi concedida dentro do Esquenta WOW, em Niterói, uma realização da Redes da Maré que, ao longo de 2019, percorreu seis territórios – cinco no Rio de Janeiro e um no Ceará – com o objetivo de levar um “pocket” do Festival Mulheres do Mundo, com atividades em quatro dimensões: diálogos, ativismo, empreendedorismo e intervenções de arte e cultura. A ideia foi chamar atenção – até a 2ª edição, de 6 a 8 de novembro de 2020, no Rio de Janeiro, – para a causa das mulheres, construindo pontes para outros projetos e novas possibilidades, mobilizando, celebrando e trazendo a agenda das mulheres de uma maneira permanente e sistemática – em espaços que não são contemplados com debates como esses. Inspirado no Women of the World Festival – WOW, o Esquenta WOW teve realização e curadoria da Redes da Maré e passou pela Maré, Centro do Rio, Caxias, Niterói, Santa Cruz e Fortaleza. Saiba mais no site do Festival Mulheres do Mundo

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