Cuidar é um prerrogativa para a nossa existência, imagine se você não tivesse sido cuidado quando criança? Ou se não cuidasse de sua casa, roupas e outros aspectos essenciais para a existência humana? Logo, o cuidado faz parte da vida humana, mas, na nossa sociedade – capitalista, patriarcal, machista – convencionou-se atribuir o cuidado às mulheres e pior, não o reconhecer como trabalho. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), atesta:
As atividades dos cuidados são inerentes à condição humana. Todos os seres humanos dependem de cuidados como beneficiários e como prestadores. Estas atividades são necessárias para a existência e reprodução das sociedades e da mão-de-obra e para o bem-estar geral de todas as pessoas. A própria essência de ter cidadãos e cidadãs independentes e com autonomia, assim como trabalhadores e trabalhadoras produtivos, assenta na existência da prestação de cuidados. Em consonância com a literatura, […] o trabalho de cuidados é definido em sentido lato, como consistindo em atividades e relações que implicam a satisfação das necessidades físicas, psicológicas e afetivas de pessoas adultas e crianças, pessoas idosas e jovens, fragilizados e fisicamente aptos. Os recém-nascidos, jovens, pessoas idosas, doentes e as pessoas com deficiência, e inclusivamente as pessoas adultas saudáveis, têm problemas físicos, psicológicos, cognitivos e emocionais e requerem diversos graus de proteção, cuidados ou apoio. […] baseado numa definição abrangente de trabalho de cuidados que cobre todo o espectro dos cuidados e inclui as atividades envolvidas na reprodução social. As atividades de cuidados são compostas por duas grandes categorias. Em primeiro lugar, as que consistem em atividades de cuidados diretos, face a face e pessoais (por vezes referidas como cuidados de «educação» ou «relacionais»), tais como amamentar um bebé, cuidar de um parceiro doente, ajudar uma pessoa idosa a tomar banho, realizar check-ups de saúde ou ensinar as crianças pequenas. Em segundo lugar, as que envolvem atividades de cuidados indiretos, que não implicam cuidados pessoais face a face, tais como as limpezas, cozinhar, tratar da roupa e outras tarefas de manutenção do agregado familiar (por vezes referidas como «cuidados não relacionais» ou «tarefas domésticas»), que constituem as pré-condições necessárias à prestação de cuidados pessoais. Estes dois tipos de atividades de cuidados não se podem dissociar e sobrepõem-se frequentemente na prática, tanto nas famílias como nas instituições. O trabalho de cuidados é sempre realizado no âmbito de uma relação de cuidados entre o cuidador ou cuidadora e a pessoa beneficiária dos cuidados – entre a mãe e o filho, enfermeira/o e o paciente, trabalhador/a doméstico/a e o empregador, o filho e o pai doente. (OIT, 2019, p.8-9, grifos nossos).
Antes de prosseguirmos com essa reflexão, trazemos Leonardo Boff (2005), que trabalha a definição do conceito cuidado:
Em latim, donde se derivam as línguas latinas e o português, cuidado significa Cura. Cura é um dos sinônimos eruditos de cuidado, utilizado na tradução do famoso Ser e Tempo, de Martin Heidegger. Em seu sentido mais antigo, cura se escrevia em latim coera e se usava em um contexto de relações humanas de amor e de amizade. Cura queria expressar a atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pelo objeto ou pela pessoa amada.
Outros derivam cuidado de cogitare-cogitatus e de sua corruptela coyedar, coidar, cuidar. O sentido de cogitare-cogitatus é o mesmo de cura: cogitar e pensar no outro, colocar a atenção nele, mostrar interesse por ele e revelar uma atitude de desvelo, até de preocupação pelo outro. O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me a ele; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de suas conquistas, enfim, de sua vida. (Grifos nossos).
Boff (2005), nos mostra que o cuidado precede uma relação com o outro, uma relação de afeto e preocupação ou uma relação de trabalho, mediada pela recebimento de um salário para prestação do trabalho do cuidado. Vemos que o cuidado pode ser um trabalho remunerado ou uma trabalho “invisível”, como muitos insistem chamar, mas, que é executado por um membro da família – geralmente uma mulher –, mantendo a salubridade da casa, a harmonia entre os membros e qualidade de vida e o bem-estar geral daquela família.
Gostaríamos de retomar as falas de Silvia Federici (2019). De acordo com a autora, o trabalho doméstico é o mais importante na sociedade capitalista, porque é ele que dá origem aos trabalhadores. Gerar, parir, alimentar, reconfortar, recompor: o cuidado feminino fundou a organização capitalista, ao reproduzir a força de trabalho. A casa e a família seriam, nesse sentido, a “fábrica das mulheres”. Mas, essa “fábrica” é vista como improdutiva e o trabalho exercido dentro dela também. O trabalho doméstico, mesmo remunerado, na sociedade capitalista, que mede a relevância de um trabalho pela sua capacidade de produzir mercadorias e gerar lucro, entende que o trabalho doméstico é um trabalho improdutivo.
Talvez, o trabalho doméstico, seja o trabalho de cuidar mais conhecido e praticado, mas, o cuidado pode se dar de outras formas, inclusive como ocupação laborativa, como acontece com o trabalho de cuidador de idosos, pessoas com deficiência. Devemos enfatizar, que existem fases na vida, que o cuidado é mais necessário ou momentos pontuais que demandam mais a atenção do outro, outrossim, o cuidado com as tarefas domésticas é infinito, como no castigo de Sísifo. (O mito de Sísifo fala sobre um personagem da mitologia grega considerado o mais inteligente e esperto dos mortais. Entretanto, ele desafiou e enganou os deuses e, por isso, recebeu um castigo terrível: rolar uma grande pedra montanha acima por toda a eternidade. (Disponível em: https://www.culturagenial.com/sisifo-resumo-e-significado-do-mito/. Acessado em 02 de mai. de 2024).
Ao longo dos anos o cuidado foi se especializando, se profissionalizando e se consolidando como um setor econômico que movimenta a sociedade, visto que muitas famílias, com alto poder aquisitivo, tem historicamente a possibilidade de terceirizar as tarefas relacionadas ao cuidado de casa ou pessoas.
A economia de cuidado envolve um grande leque de atividades sociais e econômicas. A força de trabalho no cuidado abrange desde quem trabalha em setores de cuidado, que incluem, por exemplo, educação, saúde e serviços sociais, bem como quem realiza o trabalho doméstico. Também inclui o trabalho de cuidado em outros setores, como o serviço de limpeza e cozinheiros em setores não diretamente vinculados com o cuidado (OIT, 2018a). Estima-se uma força de trabalho global no cuidado de 381 milhões de pessoas – sendo 249 milhões de mulheres e 132 milhões de homens. (Posthuma, 2021, p.29).
A questão, é que as ocupações relacionadas ao cuidado, seguem desvalorizadas e consideradas improdutivas (que não produzem valor ou não há possibilidade de acumulação de capital), mesmo sendo, reconhecidamente, fundamentais para manutenção do bem-estar e tranquilidade daqueles que contratam esses serviços. Ser um trabalho improdutivo, coloca seu profissional numa condição delicada, subalterna, desprestigiada, automaticamente, a maioria dos sujeitos não irão querer exercer tais funções.
Como dissemos anteriormente, o cuidado é exercido por membros da família, mas, predominante, à cargo das mulheres, famílias abastadas terceirizavam essa responsabilidade, repassando as responsabilidades do cuidados à profissionais. Mas, é preciso pensar a quem essa economia se destina e como aqueles que não tem condições materiais para acessar os serviços relacionados ao cuidado serão atendidos.
Pensar o cuidado como trabalho e como política pública, é reconhecer que aquele “trabalho invisível” que mantem casas arrumadas, crianças alimentadas e anciões confortáveis precisa ser assegurado também para aqueles que não podem exercê-lo, não podem pagá-lo e não tem uma rede de apoio que possa lhe dar suporte, é reconhecer que as pessoas precisam ter suas necessidades atendidas, seja pela via da terceirização seja pela via da oferta pública. Outrossim, é olhar o cuidado com mais prestígio e como, de fato, um trabalho, inserido na divisão sociotécnica do trabalho e que movimenta a economia, gera empregos, demanda novos serviços e produtos.
Tratando-se do cuidado de pessoas, na inexistência de familiares ou de condições financeiras para tal, o Estado assumirá essa responsabilidade, através do provimento de políticas públicas. Para fins de oferta de serviços voltados para o cuidado, atualmente, o Estado brasileiro dispõe da Política Nacional de Assistência Social, que de acordo com a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) – Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993 – que em seu Art. 1º determina:
Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas. (BRASIL, 1993).
Sabemos o quanto a política pública de Assistência Social e, os serviços que oferecem cuidados, são fundamentais, especialmente, para atendimento das necessidades dos desvalidos e socialmente excluídos, mas, é preciso de fato, tornar o cuidado política pública, acessível, gratuita e de qualidade para toda a população um conglomerado de 30 entidades e organizações feministas de mulheres negras, da economia solidária, das lutas pelos direitos humanos, divulgou um manifesto por uma “Política Nacional de Cuidados que enfrente as desigualdades pautadas no bem viver”, que propôs “[…] um amplo debate sobre o cuidado, principalmente sobre que tipo de cuidado precisamos para reduzir as brutais desigualdades que vivemos como mulheres trabalhadoras, negras, periféricas, do campo, das aldeias, quilombos, das águas e florestas.” (Disponível em: Themis – Gênero, Justiça e DH (@themis.org.br) • Fotos e vídeos do Instagram. Acessado em 02 de mai. de 2024.)
Pensar o cuidado como economia é reconhecer múltiplos fatores sociais e históricos que moldaram, ao longo do tempo, nossa sociedade e as relações sociais que nela se estabelecem, com destaque para as exigências materiais impostas pelo capitalismo e as reinvindicações e conquistas dos movimentos feministas, que abriram espaço para que as mulheres pudessem terceirizar o cuidado.
Diretamente, as atividades de cuidado, podem não gerar valor, ou seja, não são economicamente rentáveis, mas, são atividades que garantem condições essenciais para a sobrevivência de pessoas, especialmente, as mais vulneráveis e dependentes. Para além do serviço em si, existe toda uma cadeia produtiva em volta, que pode envolver uniformes, treinamentos, agências de recrutamento e seleção, assim como atividades ligadas à formação dessa economia do cuidado e que movimentam o sistema econômico, assegurando condições de produtividade para os demais trabalhadores, além de gerar empregos (o que também movimentam a economia).
Políticas públicas de cuidado devem ser pensadas com o objetivo de resguardar direitos humanos e o bem viver dos vulneráveis, para tal, é imprescindível que sejam atravessadas por questões de raça, gênero e geração, devem pensar o cuidado de pessoas que cuidam e/ou cuidaram e das que necessitam de cuidados. As políticas públicas devem, nesse sentido, ter como propósito, não só a assistência material ou social, mas, também ter um efeito transformador, que traga ganhos sociais significativos. Tornar-se de fato o cuidado como política pública pode garantir dignidade aos sujeitos, mas, também, modificar o entendimento social que se tem sobre o cuidado, dignificando, finalmente, o trabalho doméstico e outras formas de trabalho ligadas ao cuidado, gerando empregos e qualidade de vida para a população mais pobre, promovendo a equidade de gênero e, principalmente, promovendo a dignidade trazendo finalmente quem sempre cuidou para um outro lugar.
Referências
BOFF, Leonardo. O cuidado essencial: princípio de um novo ethos. Inclusão Social, V. 1, N.
1, p. 28-35, out. 2005. Disponível em: https://revista.ibict.br/inclusao/article/view/1503. Acessado em 02 de mai. de 2024.
BRASIL. Lei nº 8.742. Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). Brasília: 7 de dezembro de 1993. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742.htm. Acessado em 02 de mai. de 2024.
FEDERICI, Sílvia. O ponto zero da revolução: Trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Prestação de cuidados: trabalho e profissões para o futuro do trabalho digno. Bureau Internacional do Trabalho – Genebra: OIT, 2019. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/351330156_Prestacao_de_cuidados_trabalho_e_profissoes_para_o_futuro_do_trabalho_digno_Bureau_Internacional_do_Trabalho__Genebra_OIT. Acessado em 02 de mai. de 2024.
PÓSTHUMA, Anne Caroline. A economia de cuidado e o vínculo com o trabalho doméstico: o que as tendências e políticas na América Latina podem ensinar ao Brasil. In: PINHEIRO, Luana; TOKARSKI, Carolina Pereira; POSTHUMA, Anne Caroline (Orgs.). Entre relações de cuidado e vivências de vulnerabilidade: dilemas e desafios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil. Brasília: IPEA; OIT, 2021.
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