Por Suzana Padua

Mestra em educação ambiental e doutora em desenvolvimento sustentável. Co-fundadora e presidente do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas e da Escola Superior de Conservação Ambiental e Sustentabilidade (Escas)

O que tem um tema a ver com o outro? Pois eu diria que muito! Há pontos de convergência que nem sempre são claros porque não fomos educados para nos sentirmos parte de um mundo vivo, pulsante, complexo, interdependente e diverso.

Em termos de evolução, quanto mais diversidade há, mais chance de sobrevivência existe frente a imprevistos ou mudanças repentinas. Isso pode ser verdade para todas as espécies, inclusive a humana. O que parece faltar é a amplitude de visão que ajudaria a direcionar a humanidade a pensar e a agir com base na inclusão e, melhor ainda, com um senso de celebração da vida.

Ultimamente tem havido mais e mais debates sobre racismo, preconceitos e intolerâncias religiosos e escolhas diversas. As injustiças estão sendo deflagradas e talvez essa seja uma oportunidade de reverter os quadros desumanos de tratar a vida. Hoje há informações e evidências suficientes para que possamos quebrar os padrões e estruturas estabelecidos. Ou seja, não há desculpas para não agirmos de maneira diferente.

O que ocorre entre os humanos, ocorre também entre gente e natureza. A tensão acaba por provocar movimentos sociais inflamados no caso da sociedade e se a natureza pudesse se expressar o faria de forma análoga. Aliás, já se manifesta com instabilidades drásticas de chuvas torrenciais ou estiagens prolongadas, furacões, tsunamis ou pandemias, como a que estamos enfrentando nesses últimos dois anos com a Covid. Os efeitos são sempre nefastos e muitas vezes irreversíveis, irrecuperáveis.

Fomos criados com vieses bastante sutis que permitem pensamentos nada inclusivos. Na esfera religiosa, existem duas pegadinhas que precisariam ser examinadas cuidadosamente para serem colocadas em seus devidos lugares ou extirpadas da cultura dominante. Uma é que fomos criados à imagem e semelhança de Deus, o que nos coloca em posição de superioridade frente a outras espécies, nos dando o direito de usá-las de forma abusiva e insustentável. Historicamente, essa noção extrapolou à esfera humana quando as igrejas não reconheceram índios ou negros como seres com almas, levando dominadores a os explorarem com toda a sorte de abusos, tendo a escravidão como exemplo mais elucidativo desse processo. Quando uns se acham superiores a outros, afloram-se as piores características com aval da sociedade em geral.

Com a natureza, há similaridades com o que tem ocorrido. Pensadores da Renascença como Bacon, século 16, pai do método empírico da Ciência, defendia que as forças da natureza precisavam ser “domadas” para responderem aos desejos dos humanos. A natureza deveria ser “escravizada” para “servir” a humanidade e assim podia ser explorada para suprir suas necessidades. Com a Revolução Industrial, esse pensamento prevaleceu e o fato é que as “necessidades” e anseios aumentaram exponencialmente, sem haver preocupação e cuidado consistentes com a sustentabilidade dos elementos naturais.

No século seguinte, 17, Descartes defendeu a ideia de que o universo é uma máquina e a natureza funciona de acordo com leis mecânicas, onde são as partes que ajudam no funcionamento do todo. Essa foi a base acatada para os estudos científicos até o século 19, que careciam de um sentido da vida em sua grandeza, sem uma visão de seu conjunto. A exploração dos recursos naturais prosseguiu de maneira indiscriminada, sem a compreensão de que vivemos em um planeta finito cujos elementos são interligados e interdependentes, que compõem um sistema vivo do qual somos parte.

A outra pegadinha das religiões em geral é que um salvador chegará no derradeiro momento de nossa existência para nos libertar das agruras terrenas. Ora, com essa premissa ficamos livres para agirmos como quisermos. Podemos continuar sendo egoístas e nos limitando a defender o que é “meu”, deixando o que é “nosso” de lado? A prioridade do coletivo fica, assim, mais distante e intangível.

Esses pensamentos têm sido predominantes, mas sempre existem aqueles que nos trazem luz ao pensarem diferente e, assim, lançam caminhos mais promissores. Mesmo individualmente, o livre arbítrio amplia nossas possibilidades de escolhas e nos torna responsáveis pelas consequências de nossos atos, que podem ser prejudiciais ou contributivos à vida em geral.

A história humana mostra infinitas formas de exploração do homem e da natureza. O Brasil tem sido palco de ambos desde seu nascedouro. O tráfico de pessoas e a escravidão, que inacreditavelmente acontece até hoje de forma não oficial ou camuflada, evidenciam tal absurdo. E há discriminações de toda sorte, relatadas sutil ou escancaradamente. Só não vê quem não quer.

Em relação ao mundo natural, o Brasil poderia ser exemplo de um desenvolvimento diferenciado, que levasse em conta a riqueza da diversidade existente em seu território. Mas, novamente a história nos mostra o contrário. José Augusto Padua descreve os ciclos econômicos do Brasil desde seu “descobrimento” pelos portugueses, sempre priorizando a exploração de uma espécie, como o próprio pau brasil que deu nome ao país, cuja madeira foi exportada para a Europa para tingir roupas da elite da época. Depois seguiram-se ciclos como cana de açúcar, algodão, café, entre outros, que são plantados como monoculturas após a retirada de ecossistemas ricos em biodiversidade. Ou seja, centenas ou milhares de espécies são sacrificadas para favorecer apenas a uma. Esse fenômeno continua a acontecer em vários locais do território nacional, mas a Amazônia chama a atenção nacional e internacionalmente, por ter suas florestas devastadas para dar lugar à soja e ao gado.

Outros produtos explorados no Brasil como ouro, borracha, ferro ou demais metais, também trouxeram e trazem consequências nefastas para as pessoas e para o mundo natural. Exemplos incluem a mineração em Minas Gerais, com desastres sem precedentes como os de Mariana e Brumadinho, causando perdas irrecuperáveis com inúmeras mortes. O que é pior, com as necessidades humanas crescentes, dificilmente haverá uma rápida mudança nos critérios de exploração dessas “riquezas”, com formas cuidadosas de se praticar a mineração, que se espalha em garimpos ilegais na Amazônia, contaminando paraísos no Tapajós e seus afluentes, por exemplo.

Outro cenário preocupante é o uso indiscriminado de agrotóxicos, que prejudicam a todos. As evidências são inquestionáveis, mas um estudo recente realizado por Patricia Medici, (pesquisadora do IPÊ) e colegas, analisou antas mortas por atropelamento e evidenciou que 100% delas estavam com alto grau de contaminação por agroquímicos utilizados nas lavouras de monoculturas do Cerrado. Isso quer dizer que, além da devastação óbvia, há danos à flora, à fauna e a nós humanos que ocorrem de forma camuflada, invisível.

Kent Redford e colaboradores escreveram recentemente um artigo, ““Healthy Planet, Healthy People”, que reforça a ideia de como tudo é interligado e que há uma vida invisível que afeta a visível. A qualidade da saúde de humanos, animais domésticos e selvagens, plantas, fungos, bactérias e micróbios em ambientes naturais e construídos são interdependentes e influenciam a saúde e a qualidade de vida em geral. Daí a importância de se ater a questões ambientais como biodiversidade, clima, água, alimentos, químicos agressivos, entre outros. O que os autores alegam é que mesmo os conservacionistas têm deixado de considerar essa abrangência e concentrado atenção em alguns fatores como saúde humana versus de outros animais, ou versus determinados ecossistemas, além de outros focos restritos. Na abordagem que chamam de One Health, Uma Saúde, eles propõem uma visão abrangente que leva em conta a qualidade de todos esses aspectos. A saúde, segundo eles, depende da interconexão de todos os elementos presentes em tudo para que a qualidade de vida seja integral.

Apesar do conhecimento disponível atualmente, a humanidade, na sua maioria, manteve a ideia de Bacon e Descartes quanto à simplificação dos ambientes, destruindo ou empobrecendo a riqueza natural que continham para atividades que rendem ganhos imediatos. Com isso, aumentam-se as pragas, as pandemias e toda sorte de males, que muitas vezes nem existiriam em ambientes diversos e equilibrados.

Sabemos que mesmo dentro de uma mesma espécie há competição por territórios, por recursos e por parceiros. As diferenças vão sempre existir e devem ser valorizadas, ao invés de hostilizadas. A razão é simples: enriquecem o planeta como um todo. Caberia à humanidade dar um salto em sua forma de encarar a vida e sua diversidade, prezando-a e a protegendo.

Uma questão central é como levar a sociedade a pensar em longo prazo? Com as tecnologias modernas, tem-se priorizado o que responde às necessidades prementes, sem que se reflita sobre as consequências, sobre o que decorrerá do que fazemos hoje. Sair do imediatismo por meio de uma reflexão mais consciente e responsável deve ser um dos papéis da educação ambiental. Cultivar essa noção de que cada escolha e cada ato traz consequências deveria ser uma vertente central da educação em geral. Além disso, chamar a atenção para o valor da diversidade é também fundamental, pois pode resultar em uma nova maneira de nos relacionarmos com o mundo.

Todo esse texto pode soar uma grande utopia – e talvez seja. Sei que o espírito de sobrevivência fala alto e foi agindo com base nele que evoluímos e chegamos aonde estamos hoje. Mas, como diz Claudio Padua, “o que nos trouxe até aqui não vai nos levar a um futuro promissor; muito ao contrário, pode ameaçar nossa sobrevivência na Terra”. Vamos precisar mudar e que seja conscientemente, com base no amor à vida.

Pensar que a educação ambiental é capaz de reverter realidades com raízes tão profundas talvez seja muita pretensão. Todavia, é um caminho que propõe reflexões, mudanças de valores e comportamentos e um redirecionamento de escolhas. Cabe a nós, educadores ambientais, buscarmos meios de levarmos a humanidade a valorizar a vida em toda a sua diversidade, tanto dentre a própria espécie humana, como entre ela e a natureza da qual faz parte.

Quem sabe a beleza da natureza pode sensibilizar as pessoas para a magia da vida e despertá-las também para o valor da diversidade humana? Afinal, a riqueza dos elementos naturais, das espécies, dos ecossistemas, assim como da diversidade humana com suas culturas e cosmovisões diferenciadas faz parte integral do ecossistema planetário. E a educação ambiental tem o potencial de seguir o caminho do valorizar gente e natureza, chamando a atenção para o fato de quanto mais diverso e rico for o planeta, mais possibilidades teremos de sobreviver com dignidade, qualidade e com a capacidade de celebrar a vida em toda a sua plenitude.

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