A tecnologia e os dados são usados por empresas, governos e políticos para tudo: alimentar algoritmos, fazer marketing, vender mais. Mas eles também podem ser usados pela sociedade civil para transformar a realidade de pessoas e comunidades, com iniciativas inovadoras que promovem impacto social. Um bom exemplo é o Instituto Guetto, do Rio de Janeiro, que nasceu de uma comunidade de Facebook e hoje é um think tank de pesquisas e projetos para a superação do racismo por meio de educação, tecnologia e empreendedorismo.

O Guetto nasceu quando Vitor Del Rey fazia mestrado em administração pública na FGV. Ele era um dos três estudantes negros de toda a faculdade.

“Educação garante mobilidade social”, diz Vitor.  Foi o gosto pela leitura, incentivado por uma tia, que o fez mergulhar nos livros. O primeiro foi “Marcelo, Martelo, Marmelo”, de Ruth Rocha. À época, Vitor morava em uma casa construída em cima de um brejo — a que viviam antes, no Morro da Cocada, em Nova Iguaçu, desabou.  A consciência racial, ele diz, chegou bem depois, quando entrou no cursinho pré-vestibular do Educafro, um movimento de inclusão de pessoas afrodescendentes e de baixa renda nas universidades.

Primeiro, Vitor criou, em 2016, a Escola Ponte para Pretxs, com cursos de idioma e tecnologia gratuitos. “Nossos alunos eram pessoas pretas e pardas que não tinham feito boas faculdades, não falavam outra língua, não tinham conhecimento de tecnologia e, logo, eram as primeiras eliminadas em um processo seletivo”, conta. “Nosso objetivo era fazer com que elas chegassem melhor preparadas no mercado de trabalho”. 

Essa troca de experiências realizada no Ponte para Pretxs foi cunhada por ele como “economia colaborativa dos saberes”. “Aos fins de semana, a gente enchia as salas da FGV com cem alunos de forma clandestina e oferecia os cursos, dados por voluntários brancos de classe média e alta”, conta.  “Quando a direção da faculdade descobriu o esquema, solicitou a interrupção das aulas. Pouco tempo depois, voltou atrás por reconhecer o valor da iniciativa”.  No primeiro ano, os cursos alcançaram 350 alunos.

O tema do mestrado era mobilidade social e cidades inteligentes. À época, Vitor estava conectado com a questão da tecnologia e seu impacto no aumento da pobreza. “Eu tinha acabado de ler Sociedade em Rede, do Manuel Castells, e estava refletindo muito sobre como o capitalismo ia gerar novas distorções e desigualdades em razão das inovações”. 

A ideia fixa de que ele tinha como missão reduzir a distância entre pretos e tecnologia fez com que os cursos de tech fossem ampliados.“Eu não queria que os pretos soubessem o que é blockchain quando ela já fosse obsoleta. A gente pegava uma novidade fresquinha de Harvard ou do MIT e já transformava em curso”, recorda Vitor, num contexto em que a lacuna de tecnologia é imensa em toda a sociedade. Uma pesquisa feita pela Anatel revelou que 76% dos brasileiros não têm habilidades digitais básicas, como anexar um documento no e-mail.

Com a chegada da pandemia, e do primeiro filho, Vitor decidiu estruturar a Escola e aumentar seu escopo de atuação: criou um hub de serviços e estudos, com pesquisas baseadas em dados, sobre a população preta. Nascia, em 2020, o Instituto Guetto (acrônimo para Gestão Urbana de Empreendedorismo, Trabalho e Tecnologia Organizados). 

A Escola para Pretxs foi transformada em EAD (ensino a distância) por força da pandemia, e agora alcança dez mil alunos, com mais de 15 cursos oferecidos. Outro projeto criado foi o aplicativo Kilombu, plataforma digital que conecta afroempreendedores com clientes e parceiros comerciais, dando visibilidade ao afronegócio. O app tem cerca de 2 mil empreendedores cadastrados.

Três anos depois de criado, o Guetto já realizou parcerias com grandes empresas como Google e Facebook e oferece consultorias para o mundo corporativo, como a de Criação e Ocupação de Comitês de Diversidade. Também faz pesquisas próprias e sob demanda. Atualmente, a equipe de Vitor trabalha em um Mapa Preto da Educação e em uma pesquisa encomendada sobre a inequidade na educação em 16 estados brasileiros.

“Nosso objetivo é produzir dados e soluções baseadas em cima desses dados, influenciando os formadores de opinião, políticos, empresas e a academia.”

Outros exemplos do uso da tecnologia contra a pobreza

Outras duas iniciativas que mostram como os territórios podem produzir seus próprios dados vêm de duas comunidades do Rio de Janeiro. O Data_Labe, do Complexo da Maré, nasceu em 2016 dentro do Observatório das Favelas e tem três eixos de atuação: jornalismo, formação, e monitoramento e geração cidadã de dados (GCD). 

Um dos projetos mais relevantes do Data_Labe, no momento, é o CocôZap, que através de uma ferramenta simples, acessível e de uso massivo, o WhatsApp, coleta informações sobre saneamento básico na Maré. Os dados são sistematizados em planilhas e depois inseridos no site do Data_Labe, dentro de um mapa da comunidade onde aparecem todas as queixas já apresentadas.

A segunda iniciativa nasceu no Jacarezinho, favela da zona Norte do Rio, durante a pandemia do coronavírus, quando foi lançada a campanha “Jaca contra o corona”. O LabJaca foi criado a partir da necessidade de os moradores terem uma real dimensão sobre o número de infectados e mortos dentro da comunidade, historicamente esquecida e negligenciada pelo Estado. Hoje, além de coletar dados sobre diversos temas (saúde, saneamento, violência), o LabJaca produz também narrativas, através de textos e vídeos, que representam os 37 mil moradores do território.

Indicadores para uma cidadania ativa

O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) criou uma metodologia, com quatro indicadores, para que qualquer pessoa ou organização consiga fazer uma leitura mais realista de cada território e, assim, criar planos de ação para a comunidade exigir do Estado o que não está sendo entregue. É o Incid. Segundo Rita Correa Brandão, diretora do Ibase, o programa incentiva uma cidadania ativa, que se constrói, na prática, com a sociedade civil organizada em torno de seus problemas e soluções. Saiba mais aqui.

 O Incid tem como objetivo produzir e disponibilizar dados para a luta cidadã em quatro frentes:

1) Cidadania medida: a oficial, feita por governos e instituições privadas. 

2) Cidadania garantida: o que o Estado de fato garante no território analisado. 

3) Cidadania percebida: como a população moradora percebe seus direitos de cidadã. 

4) Cidadania ativa: como os territórios se organizam para exercer seus direitos.

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