O 13 de Maio é uma data que marca, oficialmente, o dia da abolição da escravatura no Brasil. No entanto, tal evento muitas vezes obscurece a complexidade do processo histórico que resulta na origem da desigualdade social que marca de forma estrutural a sociedade brasileira. Último país das Américas a abolir o trabalho escravo, o Brasil não adotou nenhuma medida para inclusão social e econômica das pessoas “libertas”, impulsionando um ciclo de marginalização e de pobreza para pessoas negras.

Vamos explorar essa complexidade, analisando o mito da libertação dos escravos, sua relação com o presente e os desafios enfrentados pelos corpos negros na sociedade atual?

O Mito da Libertação 

O processo de abolição da escravidão foi marcado por debates intensos e conflitos políticos. Desde o período colonial, movimentos abolicionistas começaram a surgir, impulsionados por pensadores negros abolicionistas como Joaquim Nabuco, Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio, clamando pelo fim da escravidão e pela garantia dos direitos humanos para os africanos trazidos de sua terra natal e escravizados aqui. Tais movimentos enfrentaram resistência significativa das elites agrárias, que dependiam do trabalho escravo para manter sua riqueza e poder. Assim, é importante ressaltar que a abolição não foi uma dádiva concedida às pessoas escravizadas, mas resultado de suas lutas e resistências. Além disso, houve um  apagamento da resistência negra, dando destaque a uma imagem redentora da princesa Isabel, uma mulher branca, da família imperial, que figura nos livros de história como a pretensa salvadora da população escravizada. 

Um marco importante nesse processo foi a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que proibiu o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas para o Brasil. Embora essa lei tenha sido um passo importante na direção da abolição, ela não resolveu o problema das pessoas que já tinham sido escravizadas no país. Foi apenas com a crescente pressão internacional, a deterioração do sistema escravista e a emergência de movimentos abolicionistas mais organizados que o Brasil finalmente promulgou a Lei Áurea em 1888. Apesar da abolição formal da escravidão, a libertação das pessoas africanas escravizadas não significou igualdade e justiça para as pessoas negras. Muitos libertos enfrentaram condições de vida extremamente precárias, com acesso limitado a emprego, educação e moradia. Muitos foram abandonados à própria sorte, sem apoio do Estado ou das elites que anteriormente se beneficiavam do trabalho escravo.

Escravidão Moderna

Apesar da abolição formal da escravidão, a escravização moderna persiste em várias formas. Tráfico humano, trabalho forçado, exploração sexual, servidão por dívida, jornada exaustiva e condições de trabalho desumanas são realidades enfrentadas por milhões de pessoas em todo o mundo, especialmente em países em desenvolvimento. Essa forma contemporânea de escravidão muitas vezes afeta desproporcionalmente pessoas negras, que são vulneráveis devido a formação sócio-histórica do nosso país, que forjou estruturas sociais e econômicas que perpetuam a desigualdade racial. 

A escravidão moderna é um fenômeno complexo e multifacetado, enraizado em sistemas econômicos injustos, desigualdade de gênero, discriminação racial e falta de proteção legal para os mais vulneráveis. Ela é alimentada pela demanda por mão de obra barata e pela exploração de grupos marginalizados, incluindo migrantes, refugiados e minorias étnicas.

Um dos aspectos mais perturbadores da escravidão moderna é o seu caráter clandestino e invisível. Muitas vezes, as vítimas são mantidas em cativeiro sob ameaça de violência, coerção ou manipulação psicológica, o que dificulta sua identificação e resgate. Além disso, falhas em processos de fiscalização, precarização generalizada das condições de trabalho e a falta de ação por parte das autoridades e da sociedade em geral contribuem para a perpetuação desse ciclo de exploração e abuso.  

Mas se o trabalho análogo ao escravo ainda existe nos dias de hoje é porque seu produto é consumido. Ou seja, a escravidão contemporânea acontece na produção de café, do vinho, do chocolate, de roupas. Refletir sobre em que medida estamos conscientes da origem dos produtos é um importante passo para não alimentar fornecedores que se utilizam de trabalho análogo ao escravo.

A Subalternidade dos Corpos Negros

As estruturas de poder e privilégio continuam a favorecer os corpos brancos em detrimento dos corpos negros, resultando em disparidades sociais, econômicas e políticas significativas. A subalternidade dos corpos negros é uma realidade persistente e refere-se à condição de ser marginalizado, silenciado e subjugado dentro de uma hierarquia social. A história de opressão e exploração dos corpos negros, que foram objetificados, desumanizados e tratados como inferiores, desde a escravidão, reflete em padrões persistentes de discriminação e marginalização, contribuindo para a manutenção dessa subalternidade, legado do período colonial e do racismo estrutural que está entranhado nas relações  e instituições sociais. Nos dias atuais, a subalternidade dos corpos negros se manifesta de diversas formas, incluindo desigualdade de acesso a oportunidades educacionais e de emprego, discriminação racial no sistema de justiça criminal, estereótipos negativos na mídia e na cultura popular, e violência policial dirigida principalmente contra comunidades negras.

A subalternidade dos corpos negros é uma questão complexa e multifacetada, que requer uma abordagem interseccional que leve em consideração as interseções de raça, gênero, classe, sexualidade e outras formas de identidade e opressão. Isso significa reconhecer que a luta contra o racismo não pode ser dissociada da luta por justiça social e igualdade para todas as pessoas marginalizadas e oprimidas.

Desafios e Perspectivas 

Como as organizações sociais podem ajudar a enfrentar os desafios da escravidão moderna e da subalternidade dos corpos negros? Esse desafio requer um compromisso contínuo com a justiça social, a igualdade racial e a reparação histórica. Isso implica em políticas públicas que abordem as causas estruturais, como a falta de acesso à educação de qualidade, oportunidades de emprego digno e serviços de saúde adequados.

Além disso, é crucial reconhecer e valorizar as contribuições dos corpos negros para a sociedade brasileira. Isso envolve promover a representatividade negra nos espaços de poder e nos meios de comunicação, bem como celebrar a cultura, a história negra e a contribuição desse povo para a formação de nossa sociedade. É necessário também combater ativamente o racismo institucional e individual, promovendo a conscientização e a educação antirracista em todos os níveis da sociedade.

O mito da libertação dos escravos no 13 de Maio obscurece a complexidade das relações raciais no Brasil, a história e realidade da escravidão, que mantém até a atualidade, os corpos negros periféricos, preteridos e subalternos. Reconhecer essa complexidade é fundamental para enfrentar os desafios do presente e construir um futuro mais justo e igualitário para todos os brasileiros. É hora de desafiar narrativas simplistas e trabalhar juntos para criar uma sociedade verdadeiramente inclusiva e antirracista, onde todos os corpos sejam valorizados e respeitados.

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