Artigo de autoria de Eduardo Alves, originalmente publicado na Revista Periferias 2 – Democracia e Periferia
Do COMUM à Política
Iniciar com a conceituação do COMUM é a abertura aqui escolhida. No livro Bem-estar comum, escrito por Michael Hardt e Antonio Negri e lançado no Brasil, pela Editora Record, em 2016, há a seguinte formulação:
“Pelo termo “comum”, referimo-nos, em primeiro lugar, à riqueza comum do mundo material — o ar, a água, os frutos da terra e todas as dádivas da natureza —, o que nos textos políticos europeus clássicos em geral é considerado herança da humanidade como um todo, a ser compartilhada por todos. Mais ainda, também consideramos parte do comum os resultados da produção social que são necessários para a interação social e para mais produção, como os conhecimentos, as imagens, os códigos, a informação, os afetos e assim por diante. Esse conceito do comum não coloca a humanidade separada da natureza, seja como sua exploradora ou sua guardiã; centra-se, antes, nas práticas de interação, cuidado e coabitação num mundo comum, promovendo as formas benéficas do comum e limitando as prejudiciais”1.
Com isso o COMUM é apresentado como toda a natureza e com o trabalho humano, que a transforma, assim como constrói toda a relação entre homens e mulheres no processo de produção social da vida. Assim sendo, as pessoas humanas se fazem seres sociais e políticos, se constituem como Zoon Politikon2, herança da definição aristotélica. O que importa aqui é chamar atenção para a relação entre as pessoas em sociedade no fazer criativo voltado para a transformação da natureza, na relação entre pessoas em busca da satisfação de suas necessidades materiais e espirituais e, nesse sentido, a realização humana plena, o que faz girar o comum nos mais profundos desejos humanos.
A natureza e toda a relação humana para sua transformação no caminho de ampliação da vida, o que envolve a transformação das coisas até a transformação das próprias pessoas, forma esse grande COMUM e aponta caminhos para fazer desembocar também em espaços comuns de relação e alterações positivas na vida em sociedade. Tratam-se de ações unificadas para resgatar do processo de apropriação, produção e convívio sociocultural que, historicamente, fazem girar as pessoas. Ou seja, as pessoas giram no comum, na natureza, na relação com as pessoas diferentes, pois é o movimento de relação entre pessoas e de transformação da natureza que faz o comum ser construído como esfera fundamental para a vida.
Eis que, nesse processo, várias questões são apresentadas: a primeira diz respeito a formação social e às pessoas que se constituem como tal em processo de relações com outros seres humanos, no processo de produção mais profundo do trabalho e na identidade sociocultural a ser construída; a segunda questão diz respeito ao processo do conhecimento, ao necessário e profundo resgaste do que há acumulado para compreender, organizar, negar e superar em processos coletivos. Nesse segundo aspecto há muita relevância à pedagogia da convivência, construindo sensibilidades e saberes comuns para ampliar a vida, na mais profunda convivência com toda pluriversidade existente.
Outro aspecto, quando confrontado com o COMUM, também é de grande relevância nessa reflexão. A apropriação histórica da natureza por alguns poucos e a organização política, que mantêm e aprofunda tal organização, coloca desafios fundamentais para avançar no caminho de outras relações sociais. Como é apropriada, modificada, organizada a natureza, tanto do ponto de vista do trabalho, quando o ponto de vista político, também apresenta questões centrais para a reflexão aqui colocadas. A apropriação da natureza, compreendendo as pessoas como parte dela, não é um movimento de naturalização e muito menos de esgotamento. Trata-se da ampliação da potência humana criativa em todos os seus aspectos e dimensões.
Isso, por sua vez, indica também os caminhos políticos a serem percorridos, construídos e conquistados. O público, o Estado, todo setor privado, muitas vezes chamado de mercado (como será visto na citação abaixo também se mistura ao Estado), influencia diretamente a vida na polis e se apresenta como obstáculo para a conquista e construção de uma cidade de direitos. Nesse sentido, apresenta-se para tal reflexão, o que Pierre Dardot e Christian Laval, escreveram no livro Comum – Ensaio sobre a Revolução no século XXI, lançado no Brasil em 2017, pela editora Boitempo:
“(…) foi o Estado que, no Brasil, entregou os transportes públicos das grandes cidades ao setor privado; também é o Estado que, em Istambul, privatiza os espaços urbanos em benefício das grandes empresas imobiliárias; e é ainda o Estado que, na Etiópia, concede a multinacionais as terras das quais é o único proprietário, com contratos vigentes por 99 anos. O regime da propriedade privada foi abalado no século XIX pelos grandes protestos socialistas, tamanha era sua dificuldade para justificar a apropriação dos frutos do trabalho dos assalariados”3.
Isso posto, é de grande relevância construir a importante diferenciação entre o público e o Estado, tendo em vista que “entregar para o setor privado” não é o que faz do Estado um ambiente privado, pois tal processo ocorre operado pelo grupo que detém o poder do COMUM e que o organiza para seus próprios fins por meio do Estado, o que demonstra o caráter privado do Estado. É neste sentido – e não somente nos processos de privatização – que podemos compreender o caráter particular e privado – e não público! – do Estado. Assim sendo, o Estado também se torna privatizado na medida em que não somente atende hegemonicamente aos interesses dos setores financeiros – industriais e das oligarquias financeiras –, mas, também, aos interesses das oligarquias políticas que possuem o controle e o poder hegemônico do Estado.
O Estado tem ocupado histórica e socialmente o papel central na gigantesca superestrutura jurídico-política, assumindo, com conflitos e contradições no seu interior, a tarefa hegemônica de organizar os interesses da dominação, da concentração e da centralização da riqueza socialmente produzida para os interesses das oligarquias financeiras dominantes. Isso torna o Estado privatizado, por seu conteúdo e por sua função sociohistórica. Por isso, Estado não é sinônimo de público, ou seja, o que é estatal não é necessariamente público. Significa dizer que as políticas estatais não são necessariamente políticas públicas, ainda que, do ponto de vista jurídico e, também, ideológico, sejam consideradas assim. É também por isso que os processos de privatizações, tal qual denunciados pelos autores supracitados4., na medida em que transformam a propriedade estatal em propriedade privada, consolidam juridicamente – logo, apenas fenomenicamente – um conteúdo que, na forma do econômico e do político, já se realizam como coisa não pública, posto que é coisa estatal, nos termos aqui colocados. E é exatamente por isso que a res estatal não pode ser vista conceitualmente e socialmente como res publica, assim como a forma jurídico-político-ideológica de organização das coisas e da vida política não pode ser conhecida somente pelo seu aspecto fenomênico, sendo, por sua vez – e não por mero contexto ou desvio –, o seu próprio contrário.
Trata-se de uma jornada, para a radicalização da democracia, que exige construir, no Estado existente e conhecido, frestas públicas emanadas pelas organizações da sociedade civil. Tais conjuntos coletivos, possuem as características necessárias para a atuação crítica e transformadora. Para isso, no entanto, precisam unificar a pluridiversidade existente, por meio da pedagogia da convivência, ampliando a potência já existente nas periferias, nas pessoas que formam esse grande território e construindo frestas que avançam assertivamente na radicalização da democracia. Destaca-se, nesse movimento, a importância da formação, assumindo o papel de organizar o conhecimento historicamente acumulado e, por meio de estudos críticos, qualificados e coletivos, avançar para ampliação e superação de tais conhecimentos. Coloca-se assim o desafio de aprofundar ao máximo o conhecer para transformar, em ações coletivas de formação e mobilização que apontem ações revolucionárias no século XXI.
A segunda reflexão diz respeito à polis propriamente dita, ou seja, ao modo como se dá a relação das pessoas, de diferentes setores da sociedade – organizados ou não! – na participação da vida política. Mais precisamente, refere-se à reflexão sobre como se realiza a participação das pessoas e de suas organizações, as da sociedade civil, na vida da polis, ou seja, na organização formal e real dos processos decisórios para os rumos da vida comum em sociedade. Neste sentido, a política estatal só será pública quando estes sujeitos da sociedade civil – os coletivos, organizações, associações etc. – forem, de fato, os sujeitos a incidirem sobre tal processo, situação que precisa ser bordada pelas próprias organizações da sociedade civil. Para que frestas públicas no Estado sejam conquistadas, os setores da sociedade civil que estão em contradição ou antagonismo às oligarquias, possuem o desafio de as abrir. Tal processo, por sua vez, opera contradições no Estado que, para tal, exige de tais setores a construção e a ampliação de organizações que produzam insumos para o processo de formação e de mobilização das pessoas, transformando-se cada vez mais profundamente em sujeitos coletivos com capacidade e com força para operar tais ações. Um processo que, ao mesmo tempo em que faz girar um grande novelo das linhas políticas, ativa a política para deslocar, favoravelmente a esses sujeitos, o acesso, o controle e a utilização do comum para satisfação das necessidades materiais e espirituais das pessoas – e não mais e exclusivamente das oligarquias. Como afirmam Hardt e Negri: O COMUM é dinâmico, e não apenas a Natureza que nós devemos partilhar, mas também os saberes que criamos, as práticas sociais que estabelecemos, os modos de sociabilidade que definem nossos relacionamentos humanos.
E, nesse sentido, precisa-se retomar o conceito de polis em Aristóteles. Para ele, a polis não era necessariamente a cidade. Mas sim uma construção de uma comunidade de sentido, de pertencimento em suas diferenças, mas com a virtude da construção do comum. E nessa esteira, o sentido do comum é alcançado na construção de comunidades de sentido que disputam hegemonia da existência humana individualista imposta pelo capitalismo. Assim, polis e cidade não são sinônimos. É a polis a comunidade de sentido que se origina do falar e do agir em conjunto. E seu espaço/tempo demarcado de realização surge dos sujeitos que vivem juntos e assim o desejam. É a polis um percurso sociopolítico de relações que os sujeitos estabelecem entre si e que só existe enquanto uns se apresentam aos outros por suas ações e discursos. E, assim, elaboram o reconhecimento da pluralidade humana, com todas as suas diferenças instituintes. A Polis é um projeto radical de democracia e, evidentemente, do comum como seu espaço de realização em permanente afirmação da diferença.
A sociedade civil e a Potência da Periferia
No espaço de organização da sociedade civil, com todos os seus conflitos, suas diferenças e sua pluriversidade de estéticas, está colocado o desafio, assim, da pedagogia da convivência, ou seja, de convivermos na diversidade para a construção desta unidade, não no sentido de eliminar as diferenças, mas, ao contrário, no sentido de consolidar a existência desta diversidade como horizonte do projeto político da polis, no sentido de realizar as necessidades plenas destes sujeitos em sua profunda diferença e diversidade. Neste caminho de organização da sociedade civil como sujeito central da polis, da ampliação da pedagogia da convivência e de sua unidade na diversidade, a polis poderá superar, de um lado, a estética da guerra e, de outro lado, transformar o estatal, cada vez mais, em público. A radicalização da democracia consiste, assim, no processo de transformar a res estatal-privada em res pública, tendo como sujeitos dessa estrada a sociedade civil organizada, com a centralidade já pulsante da potência dos sujeitos da periferia. Em outras palavras, radicalizar a democracia é o processo em que os sujeitos organizados da sociedade civil tornam-se os sujeitos centrais da polis, sujeitos estes que decidirão, com participação plena e irrestrita, os rumos da vida comum em sociedade. Radicalizar a democracia significa ter como sujeito central da vida política – e não mais como objeto – as pessoas e a sociedade civil: somente desta forma a res estatal-privatizada se tornará, em escalas cada vez mais ampliadas, uma res pública. E, neste processo, o COMUM privatizado tende a se tornar, também e cada vez mais, público, incidindo diretamente na superação das desigualdades sociais. Desta forma, o objetivo fundamental da radicalização da democracia, como forma de organização da polis, é a superação cada vez mais ampla das desigualdades sociais, em sua diversidade e em suas diferenças estruturais e institucionais: seu objetivo nuclear consiste na superação das desigualdades em todas as escalas para elevar a condição humana e para fazer valer a potência humana criativa. Por isso podemos dizer que, nesse processo organizativo, a pedagogia da convivência apresenta-se como alimento fundamental para que a ação formativa das pessoas, em processos de individuação coletivos, permita conectar as diversas linhas que constituem o volume deste grande novelo da vida.
A conquista da república, tão importante como fio condutor da conexão de múltiplos pontos que se encontram na radicalização da democracia, coloca necessariamente a transformação do COMUM em propriedades com apropriação e organização cada vez mais coletiva e das pessoas em sujeitos potentes dessa realização. Marx, em Guerra Civil na França, apresenta-nos, com clareza, a respeito da formação da república, este fazer que impulsiona os vários elos na formação social em que a democracia se radicaliza, quando afirma que “a República só é possível como República assumidamente social”. Ou seja, quando as pessoas se colocam como sujeitos para constituir tal ambiente e para que a gira do público ocorra favoravelmente à vida das pessoas, em todas as suas dimensões de liberdade.
Essa estrada, que traz possibilidades de grandes mudanças, constitui-se, assim, como o processo revolucionário no contemporâneo. Neste processo, é importante que as lentes se voltem para o conhecimento, num potente e coletivo processo de formação política continuada, opondo-se, cada vez mais, aos fenômenos ou às narrativas sem compromisso com a pluralidade do mundo da vida, voltadas para manutenção do poder existente. Movimento esse que coloca o desafio, como o deste artigo, de não confundir as formas jurídicas que separam privado e Estado, dos seus conteúdos políticos e econômicos verdadeiros que colocam o público e o mercado em terras profundamente contraditórias e distintas.
Para fazer frente a isso e seguir nesta estrada, para além de disputas eleitorais, há o desafio da sociedade civil se organizar, com mobilização e formação, unificando os sujeitos em contradição com esse modelo. É fundamental ter pontos de apoio no Estado, sejam em espaços conquistados via processo eleitoral ou em outros espaços que são determinados pelas distintas formas de meritocracia. Mas tais agentes, “eleitos ou concursados”, que atuam nas esferas políticas do Estado, são pontos de conexão com os sujeitos coletivos construídos na sociedade civil que estão na terra do paradigma da potência e atuam para fazer do comum elemento para ampliação da dignidade humana. E nesse sentido, todos os elementos de “inclusão”, como as cotas, espaços com acessibilidade para os que possuem deficiência, as várias ações que possam reforçar a participação de sujeitos fundamentais, no Estado ou nas Universidades, acumulam politicamente com conteúdos favoráveis para esse processo. São importantes para transpor barreiras impeditivas e contribuem para avançar nas ações contra o patrimonialismo institucional tão presente na formação do Estado no Brasil.
É fundamental ter a compreensão de que o COMUM está em questão: a Natureza e tudo o que é produzido ou produto do trabalho, da circulação de mercadorias à produção do conhecimento, compõem uma esfera comum que não se materializa, na sociedade atual, como COMUM.
Assim, o grande desafio é a ampliação e fortalecimento das organizações da sociedade civil, especificamente das que são constituídas por pessoas em contradição com o modelo de sociedade que predomina mundialmente, no qual as pessoas são objetos e não sujeitos. E o caminho está escrito na pedra, precisa-se apostar em formação e em mobilização para conquistar e afirmar direitos compartilhados. A disputa de hegemonia que está colocada aponta para a construção da polis, o que se fará na grande esteira da radicalização da democracia. Trata-se de um processo que unifique os amplos setores em contradição com a ordem que vigora e, que possui na periferia, os sujeitos estratégicos dessa necessária e fundamental marcha em favor da vida em todas as suas dimensões humanas.
Considerações longe do final
As pessoas que possuem centralidade na sociedade, com organizações que apresentam energias vigorosas de transformação e constituem um imenso e plural território, são os sujeitos das periferias ou da periferia, nesse caso é o que menos importa. Milton Santos, no livro Território, territórios: Ensaios sobre o Ordenamento Territorial, publicado pela Editora Lamparina, apresentou uma vigorosa definição de território: “O território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações de sua existência”. Ou seja, são as pessoas a centralidade e nesse caso, recusa-se usar o termo periferia como sinônimo de periférico, algo secundário, apenas um complemento e as vezes desnecessário. Sobre as pessoas que formam o grande território da periferia incide o maior e mais brutal peso das desigualdades, ao mesmo tempo em que manifestam, por meio da solidariedade e de ações criativas, seja por meio da arte e de todas as criações culturais, a potência humana em mais alta escala de realização nas condições atuais. Tais pessoas são o estandarte da revolução (revolução que não é sinônimo de guerra ou qualquer tipo de confronto bélico) no contemporâneo. São elas, as pessoas, sujeitos da periferia e se formam, coletivamente, em movimentos em espiral de individuação progressiva, como esse punjante sujeito transformador. A pedagogia da convivência é a estrada que esse volumoso sujeito coletivo, embalado pela energia do comum – e não pelas fitas adesivas do Estado e do Mercado – podem contribuir para unificar todas as organizações com pessoas que vivem as contradições das mais diversas com a apropriação do COMUM por poucos. Exige-se, assim, uma intensa e qualificada estrada de transformação a favor da vida plena, na qual o conhecimento crítico e a organização solidária, sejam insumos para os desafios colocados no tempo atual. E nesse processo, caminhar na terra do público é elemento determinante para que a radicalização da democracia seja tanto o processo de formação dos sujeitos, de ampliação da potência humana criativa, quanto da elevação da vida para a condição mais profunda de sua plenitude.
Array