Este artigo faz parte do conjunto de atividades promovidas pelo projeto Programa Artístico Familiar – PAF – PRONAC 223723 desenvolvido pelo Instituto Dara, patrocinado pelo Ministério da Cultura através da Lei Federal de Incentivo à Cultura.

Autora: Sheila Suzane, Coordenadora de educação do Instituto Dara. Pós graduada em Linguagens Artísticas Cultura e Educação. Graduada em Produção Cultural e em Pedagogia.

Introdução

O desenvolvimento infantil é um processo complexo e multifacetado em que diversos aspectos como os contextos familiares, sociais e culturais influenciam diretamente a formação e o bem-estar das crianças. Entre esses aspectos, a cultura ocupa um lugar de destaque, pois é ela a responsável por oferecer uma base de identidade, de pertencimento e de valores que vão orientar a vida dos indivíduos. Como sinaliza a educadora Nilma Lino Gomes em O Movimento Negro Educador (2017), a cultura é essencial para a construção das subjetividades, sendo um espaço de resistência e resiliência onde identidades são moldadas e valores são passados de geração em geração. No contexto das crianças, a presença da cultura na educação contribui para a formação de indivíduos conectados com suas raízes e mais seguros para enfrentar os desafios da vida.

Educação e a cultura são igualmente fundamentais no desenvolvimento das crianças e Paulo Freire, um dos maiores pensadores da pedagogia e da luta por uma educação emancipadora, destaca que a verdadeira educação é uma prática de liberdade (Pedagogia do Oprimido, 1974). Ele afirma que a educação deve promover a autonomia, oferecendo às crianças os meios de interpretar o mundo criticamente e de se desenvolverem como sujeitos ativos. Para que isso aconteça de forma completa é necessário que a educação dialogue com a cultura, respeitando as particularidades de cada criança e valorizando o conhecimento que ela traz de sua comunidade e de suas raízes.

Quando pensamos no desenvolvimento infantil a partir dessa perspectiva, percebemos que a educação não pode ser uma prática neutra ou descolada da realidade das crianças. Em contextos de vulnerabilidade, como os que enfrentamos diariamente no trabalho no Instituto Dara, o reconhecimento e o respeito pela cultura das famílias são elementos-chave para fortalecer a identidade das crianças e criar um ambiente seguro e acolhedor para o aprendizado. A educadora e pesquisadora bell hooks argumenta em Ensinando a Transgredir: A Educação como Prática de Liberdade (1994) que a educação como prática de liberdade deve nos ensinar a transcender as limitações impostas por sistemas que buscam o controle do conhecimento. Hooks sugere que, para que isso seja possível, é essencial que o espaço educacional valorize as histórias, as experiências e as tradições culturais dos alunos.

A conexão entre cultura e educação pode oferecer para as crianças uma base de segurança e de valorização, que muitas vezes é negada a elas em outros espaços da sociedade. O antropólogo Kabengele Munanga reforça essa ideia ao afirmar que a cultura pode ser um instrumento poderoso de fortalecimento de identidades, especialmente para as crianças e jovens negros. Em Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil (1999), Munanga destaca que a identidade é, acima de tudo, um processo dinâmico de autorreconhecimento e fortalecimento, onde a cultura é tanto um ponto de partida quanto uma bússola. Ao incentivar práticas culturais no processo cotidiano das famílias, oportunizamos às crianças uma educação que valoriza quem elas são, de onde vêm e as possibilidades de onde podem chegar.

Este artigo abordará sobre como a cultura e o incentivo para valorização das tradições culturais familiares são fundamentais para o desenvolvimento educacional das crianças, especialmente daquelas que enfrentam realidades socioeconômicas desafiadoras. Com base nas ideias de pensadores da educação, este texto explora as formas pelas quais cultura e educação, em conjunto, constroem um espaço de pertencimento, resistência e crescimento para crianças e seus responsáveis.

Cultura como Base de Identidade e Valores

A cultura é o que liga as pessoas às suas raízes, é através dela que construímos quem somos e de onde viemos. Especialmente para as crianças, a cultura funciona como um ponto de partida para se entenderem no mundo, ajudando-as a se sentirem parte de algo maior. O contato com a cultura familiar e comunitária é essencial para que as crianças se sintam valorizadas e seguras ao longo de seu crescimento.

No contexto das famílias atendidas pelo Instituto Dara, percebemos que muitas vezes a cultura é um recurso valioso que elas têm para passar às próximas gerações, e é justamente a partir dessa riqueza cultural que podemos fortalecer o desenvolvimento infantil. Por exemplo, ao realizar atendimentos e levantar os hábitos culturais de cada família, notamos que as tradições, as músicas, as histórias e até as celebrações de datas especiais ajudam as crianças e os jovens a sentirem orgulho de sua origem e a se conectarem com os valores de sua comunidade. Isso se alinha ao que Nilma Lino Gomes
defende ao afirmar que a cultura é um espaço de resistência e resiliência, onde as crianças podem crescer sabendo quem são e de onde vêm.

Educação como Agente Transformador

A educação é uma ferramenta poderosa para mudar vidas e transformar realidades. No entanto, como Paulo Freire apontou, a educação precisa ser uma prática de liberdade, que vá além do simples ensino de conteúdos. Em nossos atendimentos na área de educação, buscamos entender como cada criança se relaciona com a escola e o que a motiva (ou desmotiva) a estudar. Sabemos que muitos dos nossos alunos não encontram, no ambiente escolar tradicional, o reconhecimento de suas próprias histórias e culturas e isso pode fazer com que eles sintam a escola como um lugar distante e difícil de se conectar.

Para criar uma experiência de aprendizado mais significativa, é fundamental uma educação que respeite a cultura e o contexto social de cada aluno. Uma estratégia que utilizamos para alcançar isso é incentivar o envolvimento dos pais e familiares nas atividades escolares das crianças. Através dessa proximidade com a rotina escolar, acreditamos que é possível construir conexões entre o conteúdo pedagógico e o cotidiano familiar, da sala de aula à sala de casa.

Na nossa prática no Instituto Dara, sempre buscamos trazer atividades que se conectem com o cotidiano das crianças, seja através de leituras de histórias que refletem a realidade de suas comunidades e seus aspectos físicos ou através de projetos que incluem suas tradições familiares e sociais. Esse tipo de atividade não só aproxima a criança do aprendizado, mas também faz com que ela se sinta valorizada e representada. Como bell hooks coloca, uma “educação como prática de liberdade” é aquela que ultrapassa barreiras e que permite que a criança traga toda a sua bagagem cultural para os espaços de educação.

Desenvolvimento Infantil e o Impacto da Cultura na Educação

O desenvolvimento infantil é um processo contínuo que abrange muito mais do que o aprendizado de habilidades escolares, pois envolve aspectos emocionais, sociais e culturais. Nesse contexto, tanto a cultura familiar quanto a educação têm papéis fundamentais: para que a criança possa explorar suas habilidades e enfrentar desafios com resiliência, é essencial que ela se sinta acolhida e protegida.
Durante os atendimentos no Instituto Dara, observamos que, quando o aprendizado escolar incorpora aspectos culturais, toda a família se sente mais conectada e motivada. Um exemplo marcante foi um projeto sobre cultura afro-brasileira, que proporcionou a uma mãe a oportunidade de visitar o Museu Casa de Rui Barbosa, dedicado a um importante abolicionista brasileiro. Essa experiência foi especialmente significativa, pois sua filha estava estudando sobre Rui Barbosa na escola e precisava desenvolver um trabalho relacionado ao abolicionista. A atividade cultural permitiu que essa mãe entendesse de maneira concreta o conteúdo que estava sendo apresentado para sua filha e pode auxiliar na atividade ao mesmo tempo em que apresentava a ela um espaço cultural, estreitava os laços familiares e criava novas memórias e hábitos culturais. Esse tipo de experiência fortalece o vínculo da família com a escola e melhora o desempenho da criança, pois ela se sente motivada e segura. Como Kabengele Munanga destaca, a cultura funciona como uma “bússola” que orienta a criança na construção de sua identidade e de sua autoestima. Esse fortalecimento é essencial para que elas cresçam se sentindo parte de algo significativo, o que impacta positivamente sua relação com a escola e com o aprendizado.

Conclusão

A cultura e a educação são pilares essenciais no desenvolvimento infantil, especialmente em contextos de vulnerabilidade social. Quando essas duas dimensões caminham juntas, criam um ambiente mais rico e acolhedor, no qual as crianças podem se desenvolver de forma plena, conectadas às suas raízes e abertas às oportunidades de aprendizado.

O trabalho desenvolvido pelo setor de educação do Instituto Dara deixa evidente que incentivar hábitos culturais e tradições culturais familiares não é apenas um gesto de respeito, mas também uma estratégia poderosa para fortalecer a identidade e a autoestima das crianças. Quando elas se veem refletidas no ambiente educacional, sentem-se pertencentes e motivadas, o que melhora não só o desempenho escolar, mas também sua relação com o aprendizado e a vida em comunidade.

Investir em uma educação que valorize a cultura é um caminho para combater desigualdades e criar oportunidades reais de transformação. Essa abordagem fortalece não apenas as crianças, mas também suas famílias e comunidades, criando um ciclo de crescimento e desenvolvimento coletivo. Como reforçam Paulo Freire, bell hooks e Nilma Lino Gomes, a educação só cumpre seu papel transformador quando dialoga com as realidades e histórias dos alunos, reconhecendo que o saber não é estático, mas sim construído em conjunto.
Por isso, trabalhar com uma visão integrada de cultura e educação é um convite para construirmos futuros mais justos e igualitários, onde cada criança possa crescer sabendo quem é, de onde veio e até onde pode chegar. É um compromisso que devemos assumir como sociedade, porque quando uma criança se desenvolve plenamente, todos nós ganhamos.

Referências

● Gomes, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador. Petrópolis: Vozes, 2017. ● Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. ● hooks, bell. Ensinando a Transgredir: A Educação como Prática de Liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
● Munanga, Kabengele. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil: Identidade Nacional versus Identidade Negra. Petrópolis: Vozes, 1999.

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