Ver-se retratado na mídia apenas como parte de uma das regiões mais violentas do Rio de Janeiro, onde só se é notícia quando a polícia sobe o morro, era o tipo de situação que os moradores da Maré, complexo de favelas que fica na zona Norte da cidade, não aguentavam mais. Quando a organização social Redes da Maré idealizou um veículo de comunicação para atender à comunidade, pensou justamente nas histórias que não eram contadas: sobre cultura, arte, educação, solidariedade e a diversidade dos moradores. Histórias que elevam a autoestima — não o contrário.
O Complexo da Maré soma 16 favelas e 140 mil moradores, população maior que 96% dos municípios brasileiros. Até surgir o Maré de Notícias, jornal impresso distribuído na comunidade, em 2009, as histórias daquelas pessoas eram contadas apenas pela mídia tradicional, normalmente com o viés de quem olha de fora. Ou seja, a Maré só era notícia quando acontecia alguma violência por ali.
Com uma mídia para chamar de sua, histórias poderosas passaram a ser contadas. E os moradores passaram a se reconhecer nelas. O jornal, com tiragem de 50 mil exemplares, é distribuído mensalmente Com a criação do Maré Online, em 2017, a notícia passou a circular ainda mais longe, fazendo com que a Maré seja conhecida no Brasil todo — até fora — por sua diversidade, cultura, espírito comunitário, luta pelos direitos humanos e pelas histórias de seus moradores.
“A notícia que fazemos é para eles e sobre eles”, conta Daniele Moura, editora e coordenadora do núcleo de formação e captação do Maré de Notícias. “Não queremos falar sobre violações de direitos humanos, de miséria, da invasão da polícia. Isso a grande mídia já faz. Queremos falar da riqueza que existe aqui, da potência, do protagonismo que dá orgulho”.
A comunicação comunitária, para além de informar com mais veracidade, tem o poder de melhorar a autoestima das pessoas. “Graças às histórias contadas por nós, conseguimos bolsa internacional para bailarina, batemos metas de várias vaquinhas e muitos patrocínios para projetos locais”, afirma Daniele.
A ligação da mídia com os moradores é tão forte que vêm deles as melhores pautas. A redação, baseada na Nova Holanda, uma das favelas da Maré, fica sempre de portas abertas e já se transformou em um balcão de reclamações e informações: os moradores entram e falam que está faltando médico no posto, que a favela está sem água e outras queixas do tipo.
As informações e sugestões também chegam via whatsapp e pelas redes sociais. “Temos, ainda, grupos focais para quem quer fazer parte da nossa rede de colaboradores, que hoje soma 400 pessoas. Nosso sonho é replicar esse modelo de jornalismo em outras favelas do Rio, e até do Brasil”, diz Daniele.
Descentralizar narrativas, a exemplo do Maré de Notícias, é fundamental para que as histórias sejam contadas por quem está no território e conhece bem o lugar onde vive. É, ainda, uma forma de enfrentamento à pobreza e combate à perpetuação de estereótipos.
Hoje, há muita gente produzindo sua própria notícia. Mídia Ninja, Mídia Indígena, Notícia Preta, Fala Roça e Nós, mulheres da periferia são alguns exemplos de mídia alternativa que cobrem o que os jornais tradicionais costumam ignorar.
A informação na era da pandemia
A pandemia criou um antes e depois na existência do Maré de Notícias. Graças ao elo que já existia com os moradores através do jornal, ficou mais fácil pedir para que eles ficassem em casa e se cuidassem. Mas, só com o jornal e o site, não foi suficiente. “A pandemia fez a informação ser mais relevante que nunca e exigiu da gente novas formas de se comunicar”, recorda Daniele.
Valia tudo: lambe-lambe, parceria com rádio comunitária, carro de som com mensagens de artistas da Globo, áudios de WhatsApp com o mesmo formato apelativo das fake news e encartes com orientações dentro do jornal impresso — a versão impressa chegou a ser suspensa nos momentos mais críticos da pandemia, para poupar os entregadores.
A equipe conduzida por Daniele fez até uma parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para checar dados, já que estavam todos perdidos com o vírus que ninguém conhecia e com o volume de informações, falsas e verdadeiras. A parceria foi tão bem-sucedida que a Maré foi a primeira comunidade brasileira a ser vacinada em massa, segundo Daniele. Em julho de 2021, 93% dos moradores tomaram a primeira dose da Astrazeneca, a vacina distribuída pela Fiocruz.
Para Daniele, a grande chave do jornalismo comunitário é o “como informar?” Em especial em um contexto de baixo letramento, analfabetismo funcional, deficiências variadas, entendimento com viés de experiências prévias (como a falta de confiança no estado) e, claro, em meio a um bombardeamento de notícias falsas.
“As informações estão aí, qualquer um pode acessar, então a questão é como chegar nas pessoas”, diz Daniele. Para isso, é preciso fazer adequação de texto, usar uma linguagem o mais simples possível, estar em mídias mais acessíveis e gratuitas — o WhatsApp, por exemplo —, apostar em múltiplas plataformas para chegar em um público maior e manter um diálogo permanente com o leitor que também é protagonista das notícias.
Outro pilar do Maré é ter uma equipe com gente de dentro e de fora da comunidade, uma forma de proporcionar um intercâmbio de olhares. Daniele conseguiu uma parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que fica de frente para a Maré, e criou um curso de extensão de jornalismo comunitário, no qual são aceitos alunos de qualquer curso da Federal.
Já para formar profissionais com um olhar de dentro, foi criado um curso similar dentro da Maré, com jornalistas experientes como professores.
“Somos os donos da nossa própria história. Estamos aqui para disputar as narrativas com os grandes veículos. Queremos trazer o leitor dos veículos tradicionais, para que ele leia a notícia sobre a Maré com um olhar mais verdadeiro, sob a ótica do morador.”
O Maré de Notícias é uma iniciativa da Redes da Maré, instituição da sociedade civil que produz conhecimento, elabora projetos e ações para garantir políticas públicas para os mareenses há mais de 20 anos. Quem quiser sugerir pauta, pode enviar pelo whatsapp +55 21 97271-9410.
Conheça algumas das mídias alternativas do Brasil:
Mídia NINJA | A Mídia NINJA foi fundada em 2013, ano das manifestações de junho que reuniram milhões nas ruas do Brasil. Realizou coberturas ao vivo de dentro dos protestos, com múltiplos pontos de vista invisíveis na mídia tradicional, inaugurando uma nova forma de fazer cobertura de manifestações. Em 2016, foi uma das principais iniciativas de resistência na luta pelo fortalecimento da democracia em meio à instabilidade política. Hoje, a rede engaja mais de 2 milhões de apoiadores e cerca de 500 pessoas diretamente envolvidas com o suporte de casas coletivas pelo Brasil. https://midianinja.org
Mídia Indía | A rede do Mídia Índia é feita por jovens indígenas, sendo 128 capacitados por oficinas e mais de 60 correspondentes de diferentes localidades do Brasil. A iniciativa existe há mais de cinco anos e já conquistou um lugar importante na difusão das pautas e temas transversais à causa indígena. Seu canal no Instagram (@midiaindiaoficial) conta com quase 200 mil seguidores. Os acessos superam 10 milhões de visualizações por ano nas redes sociais. https://www.midiaindigena.org/
Notícia Preta | Fundado em 2018 pela jornalista Thais Bernardes, o NP se considera muito mais que um portal de notícias. “É um jornal antirracista feito por profissionais, estudantes e comunicadores negros(as) que acreditam que, através da comunicação e da educaçāo, é possível ter uma sociedade mais justa e com equidade racial”. O NP é também uma escola de formação de Comunicadores Antirracistas. O processo de formação acontece a cada três meses e os selecionados, que integram o time de colaboradores do portal, aprendem como fazer uma comunicação não-violenta e com recorte de raça. https://noticiapreta.com.br/
Fala Roça | Criado em uma das favelas mais famosas do país, a Rocinha, a primeira versão impressa do jornal foi lançada em maio de 2013, um mês antes das Jornadas de Junho daquele ano, marcadas por manifestações em todo o país. Como na época o acesso aos smartphones, computadores e, principalmente, à internet sem fio, não abrangia toda a favela, o jornal impresso foi pensado como forma de chegar à população offline. Com o avanço da tecnologia, o projeto foi se remodelando e passou a produzir reportagens para a versão digital e vídeos. “O ‘Fala’ é uma forma de ampliar vozes. O ‘Roça’ remete à memória local quando a Rocinha era uma grande fazenda”, diz em seu site. O jornal nasceu de um grupo de jovens da comunidade que tinha participado de atividades criativas da Agência de Redes Para Juventude, cujo objetivo era de pensar o jovem enquanto protagonista de seus desejos e realizações. Atualmente, o Fala Roça é uma associação de comunicação. https://falaroca.com/
Nós, mulheres da periferia | “Somos mulheres que criaram um site para escrever textos e registrar histórias que não encontravam em lugar nenhum. Em um país em que as mulheres estão à margem da liderança dos meios de comunicação, o Nós mulheres da periferia é uma empresa jornalística fundada e autogestionada por mulheres negras e periféricas” — é assim que as vozes femininas periféricas se apresentam em seu site. Em atividade desde 2014, o site é dedicado a repercutir a opinião e a história de mulheres negras e periféricas e, assim, democratizar o debate público e aproximá-lo da realidade brasileira, que tem uma população majoritariamente formada por mulheres negras. “Mais do que notícias, o que você encontra aqui é um jeito de ver o mundo”. https://nosmulheresdaperiferia.com.br/
Descentralizar as narrativas
Pensando na importância de os territórios se comunicarem de forma profissional e independente, a FALA, estúdio de impacto, criou o LABFALA, um laboratório-incubadora para apoiar e fortalecer nano e micro organizações de comunicação e audiovisual espalhadas pelo Brasil e, assim, descentralizar narrativas e financiamento. São seis meses de mentoria, divididos em seis módulos para coletivos de qualquer parte do Brasil que já trabalham com comunicação e audiovisual.
O objetivo é fazer com que esses coletivos se autoestruturem — com recursos materiais e financeiros — e assim consigam se manter e se comunicar cada vez melhor com suas comunidades. A mentoria inclui, ainda, um aporte de R$ 25 mil.
No projeto piloto, de 2023, dois coletivos foram contemplados: a Rede Wayuri, coletivo de comunicadores indígenas que recentemente recebeu o prêmio World Justice Project (WJP) na cidade de Haia, na Holanda, e a Abaré, cujo foco é a educação midiática nas escolas de Manaus. Para 2024, o LABFALA pretende contemplar 10 projetos. As inscrições estão abertas.
“A FALA está comprometida em promover mudanças reais. Com o LABFALA, fortalecemos organizações de comunicação dos territórios, possibilitando a ampliação do impacto de seus projetos. Criamos o LABFALA com o objetivo de descentralizar as narrativas, o financiamento e os recursos”, explica Thais Lazzeri, fundadora do FALA, que convida também a outra parte interessada para o projeto: os financiadores.
“Estamos em busca de recursos para o LAB de 2024 e para versões específicas sobre clima e violência de gênero. O sonho, no futuro, é ter uma plataforma que faça essa mentoria em larga escala, democratizando o acesso às informações e ao conhecimento.”
Saiba mais aqui: https://www.instagram.com/fala.impacto/
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