Do trabalho informal à inclusão produtiva: estratégias de geração de renda para as mulheres
“Estendi as roupas rapidamente e fui catar papel. Que suplício catar papel atualmente! Tenho que levar a minha filha Vera Eunice. Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. Suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso da Vera Eunice nos braços. Tem hora que revolto-me. Depois domino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo.”
O relato autobiográfico da então catadora Carolina Maria de Jesus em “Quarto de Despejo” traça a via dolorosa da escritora na extinta favela do Canindé, às margens do rio Tietê, em São Paulo. Como no livro, outras 37 milhões de Carolinas vivem hoje em situação de pobreza, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), graças, entre outras mazelas, à informalidade e ao acesso precário a uma renda digna e perene.
Elas são manicures, diaristas, vendedoras de cosméticos, camelôs, trancistas, cozinheiras sob encomenda, boleiras etc. Ou, na linguagem do IBGE, os que não têm registro em carteira profissional: trabalhadores privados ou domésticos sem carteira assinada; sem CNPJ; quem trabalha para empregador sem CNPJ; e o chamado trabalhador familiar auxiliar, que trabalha para a própria família, mas sem rendimento.
Informalidade em números
Entre as mulheres, a informalidade é maior. Os salários, piores em todos os vínculos de trabalho. E, no terceiro trimestre de 2022, 43,3% delas estavam em postos de trabalho informais, afirma o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), contra 39% entre os trabalhadores do Brasil. São elas as principais responsáveis por cuidar da casa e da família, com jornadas duplas e triplas de trabalho.
Fortalecer a autoestima dessas mulheres é fundamental para que elas reconheçam seu potencial. Um dos caminhos é entender como alguns talentos e competências podem gerar renda com cursos de capacitação direcionados àquela prática (manicure, doceira, designer de sobrancelhas). Assim, essa mulher consegue se profissionalizar e trabalhar com aquilo de forma organizada.
Na capacitação, é possível aprender a precificar corretamente o trabalho para obter lucro, quais equipamentos são necessários para trabalhar da melhor forma e quais ferramentas são importantes para o controle das finanças, além de ter compreensão sobre o público-alvo daquele novo produto ou serviço, com o objetivo de vendê-lo melhor e, consequentemente, gerar mais renda.
Encontrando alternativas
No Instituto Dara, são oferecidos cursos de empreendedorismo e economia criativa, com capacitação nas áreas de gastronomia e beleza. Enquanto aprendem, as mães podem deixar seus filhos com uma equipe de recreação com viés pedagógico. As famílias são ouvidas periodicamente para que a equipe identifique as potencialidades e dificuldades e, assim, defina um plano de ação personalizado e, portanto, mais eficaz.
“A escuta qualificada é fundamental no atendimento, porque as dificuldades de cada mãe são diferentes”, afirma Neige Gromniski Motta, coordenadora da área de Geração de Renda do Instituto Dara. “Muitas vezes a mãe não tem com quem deixar os filhos para trabalhar, ou mora em uma região violenta e não pode circular para vender um produto ou prestar um serviço, ou não tem os equipamentos necessários em casa para começar a empreender. Não podemos falar do empreendedorismo com uma visão romântica. É difícil começar, sair do zero e ter sucesso. Empreender no Brasil é difícil. Mas é possível quando identificamos as habilidades e damos apoio.”
Muitas vezes, o desejo de uma mãe é fazer uma faculdade ou um curso técnico profissionalizante, e a geração de renda pode ser um caminho para manter esses estudos pelo período necessário. “Incentivamos a educação o tempo todo. O ensino médio completo, por exemplo, é uma etapa fundamental para a faculdade, mas também pode significar o acesso a vagas de trabalho que pagam mais”, diz Neige.
Os impactos invisíveis
O alto índice de informalidade expõe os obstáculos surgidos sobretudo pela falta de condições mínimas de segurança trabalhista:
- Ausência de auxílios em caso de doença ou outros imprevistos;
- Falta de contribuição previdenciária, que a longo prazo pode dificultar o acesso dessas pessoas a uma aposentadoria decente;
- Falta de renda fixa, que pode trazer diversos transtornos na hora de fazer empréstimos bancários ou financiamentos, por exemplo.
Quando precisam trabalhar sob condições informais para ter acesso à renda, elas podem ultrapassar a quantidade máxima de horas trabalhadas estipulada pela lei trabalhista ou em horários irregulares, o que gera impacto social e familiar.
A já citada falta de acesso facilitado à previdência social e a benefícios, como licença-maternidade e auxílio-doença, pode impactar na saúde física e mental dessa mulher. Diante da necessidade de obter o sustento da família, a única saída é seguir.
Os direitos das mulheres
No Brasil, o debate está quente sobre as flexibilizações das leis trabalhistas. À época da discussão sobre a aprovação da reforma trabalhista, parlamentares e setores da sociedade favoráveis às mudanças defenderam e aprovaram o modelo de contrato intermitente, no qual o trabalhador recebe do empregador por hora trabalhada, sem carteira assinada. Também foi aprovado um modelo de negociação direta entre empregado e patrão, que se sobrepõe à lei e pode gerar instabilidade econômica e social para o funcionário, já que o empregador está em posição privilegiada na relação de poder. Os argumentos para defender esse modelo se concentram na possibilidade de flexibilizar horários, aumentar renda e ampliar os locais de trabalho. Funciona no mundo das ideias. No mundo real, porém, costuma resultar em sobrecarga de trabalho, precarização e agravamento da situação de vulnerabilidade da população.
É fundamental que as mulheres entendam os direitos que podem acessar, informação historicamente negada principalmente a quem vem de espaços periféricos e de baixa renda. Trabalhar essa tomada de consciência a partir do espaço em que está inserida é o ponto de partida para que ela reconheça, com segurança, onde quer chegar.
Carolina Maria de Jesus, citada no início deste artigo, era uma mulher negra, favelada e catadora de lixo que se tornou uma das escritoras mais importantes da literatura brasileira, sendo reconhecida internacionalmente. É importante que os profissionais que lidam com essas mulheres ajudem a identificar as potencialidades de cada uma que, hoje, enxerga na informalidade a única solução. Até que ela descubra todas as outras.
Combater a informalidade é um passo importante
Para combater alguns dos males da informalidade, é fundamental entender a demanda da mulher para personalizar a solução, fortalecendo sua autoestima. Avaliar se o trabalho que ela exerce se encaixa nas categorias de CNPJ para autônomos e orientar essa formalização é o primeiro passo. Caso não seja o objetivo, o ideal é buscar algum dos outros meios disponibilizados para garantir segurança social e financeira.
Acho que a solução é ser MEI. Como fazer?
- Ao se registrar como Microempreendedor Individual (MEI), a trabalhadora terá um CNPJ próprio. Com ele, pode solicitar linhas de crédito do governo, acessar a previdência, entre outras vantagens. O registro é gratuito, não sendo necessário nenhum tipo de intermediação. Tudo pode ser feito pelo portal do Governo Federal, que também disponibiliza o passo-a-passo para a solicitação do registro como MEI.
A solução não é MEI. Como acessar direitos sem carteira assinada?
- Para ter direito ao benefício do INSS, por exemplo, a mulher pode ser uma contribuinte facultativa, com opções de planos de pagamento a partir de R$ 133 — inclusive para pessoas de baixa renda cadastradas no CadÚnico que trabalham somente na própria casa.
- O pagamento garante todos os direitos da previdência social: aposentadoria por idade ou invalidez, auxílio-doença, licença-maternidade, auxílio-reclusão e pensão por morte.
Como conseguir um trabalho de carteira assinada?
- Discutir possibilidades de aprimoramento profissional através de cursos gratuitos ou de fácil acesso pode ser uma boa saída. Todo esse processo pode ser decisivo, por exemplo, para a elevação da autoconfiança dessa mulher, o que pode promover melhorias significativas em suas relações pessoais e nas suas condições de saúde.