Depoimento de Vanessa Regina Ribeiro de Oliveira dos Santos, 41 anos
Mãe de Igor Vinícius, 24 anos, Eduardo Vinícius, 20, e Julia Regina, 12

Vanessa Regina Ribeiro descobriu-se empreendedora e educadora no Instituto Dara. Fundou a Associação Ler e Saber na Comunidade, ONG de incentivo à leitura na favela da Congonha, em Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro

“O dia 27 de outubro de 2019 foi um dos mais emocionantes da minha vida. No telão da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, com uns três metros de altura, estava escrito ‘Relatos de experiências de promoção de leitura’, o meu nome e, ao lado, ‘empreendedora social’.

Lembro que, naquele dia, chegar até a Fundação foi difícil. Tive que pular no BRT [tipo de transporte público no Rio de Janeiro] sem pagar a passagem, e só tinha biscoito no bolso para comer – e eu odeio biscoito. Mas, ao ver meu nome ali na tela, toda a dificuldade deu espaço para outra lembrança. ‘Tia, como esse lugar está lindo”, disse uma das crianças atendidas pelo nosso projeto. A biblioteca estava em obras, e eu só via poeira, entulho e atraso. Eu perguntei o que ele estava vendo. “Eu tô vendo uma biblioteca linda”. Ele enxergou a potência daquele espaço.

Costumo dizer que as crianças restauram a nossa esperança, e foi aquilo que aconteceu naquele dia. Eu vi o meu nome no telão e consegui enxergar a beleza que o menino tinha visto naquela obra inacabada. Um mês depois, concluímos a obra, toda feita com doações, e inauguramos a sede do Ler e Saber e a biblioteca do projeto: Biblioteca Comunitária Professora Maria da Graça Soares Valente, Tia Graça. O nome é uma homenagem à uma professora minha dos tempos de criança, que me deu o livro A Bolsa Amarela, da Lygia Bojunga, e despertou em mim a paixão pela leitura. Às vezes, dentro do turbilhão, a gente não consegue enxergar a beleza das coisas.

Quando cheguei no Instituto Dara, em 2010, eu estava num turbilhão. Não me reconhecia. Estava desempregada – eu tinha um emprego ótimo-, com dois filhos adolescentes e uma bebê com doença respiratória que ninguém diagnosticava. Eu estava derrotada. Quem vê as fotos que a equipe do Instituto Dara fez quando cheguei aqui não acredita. Era uma mulher perdida, que sorria com os olhos tristes. Eu não conseguia ver o lado bom das coisas, do dia a dia em família. Tudo ficava prejudicado, até a convivência com as crianças. O instituto me ajudou a recuperar a cidadania e, com isso, reatar os laços com as pessoas que eu mais amava. Foi um tempo muito difícil, em que eu tive que me redescobrir como pessoa. Eu só pensava: ‘Estou gorda, meu cabelo não está bom e meu marido não me ama mais. Só carrego minha filha o tempo todo e não consigo mais tomar conta dos meus filhos, não tenho vontade nem de levantar da cama’. A psicóloga do Dara me ajudou a entender que não estava tudo perdido, que havia um caminho a seguir e que eu precisava cuidar de mim. Ao mesmo tempo, aprendi com as equipes de outras áreas a cuidar da saúde e a fazer escolhas mais saudáveis para as refeições da casa. Também recebemos apoio com leite especial para a bebê, medicamentos e uma ajuda de custo para alimentação.

‘O que você está fazendo para mudar o quadro em que você está?’ Foi a pergunta que mudou a minha vida. Aquilo mexeu comigo, porque eu reclamava mas não fazia nada para mudar a situação. Como eu queria que algo novo acontecesse se não estava fazendo a minha parte? Entendi que tinha que tratar a mente. Estava me sentindo indigna de mandar um currículo. Não lembrava a última vez em que tinha feito e enviado um.

Dentro da favela, a gente é muito criado para ser coitado. Minha mãe fez um esforço absurdo para que a gente estudasse e se entendesse como cidadão. Mas, no turbilhão, acabei esquecendo disso. Quando eu fiquei saudável, fiquei mais paciente, voltei a ser a pessoa amorosa que eu era, a cuidar da minha casa, da minha aparência. Voltei a fazer as minhas coisas devagar, respirar antes de falar e ter mais paciência para ouvir. Aí tudo começou a melhorar. Eu precisava que alguém me ouvisse, e consegui isso no Instituto Dara. O dia que eu entendi que eu precisava ir atrás dos meus direitos, mas também tinha que agir, tinha meus deveres… o dia em que eu entendi que eu precisava fazer a minha parte, as coisas começaram a mudar.

Minha perspectiva mudou, e a dos meus filhos também. Meu filho me ajudou a montar um currículo. Tempo depois, fiz as primeiras entrevistas de emprego. Logo depois, um amigo fotógrafo mostrou meu currículo na agência onde ele trabalhava e marcou uma entrevista para mim. Era na Urca, Zona Sul do Rio de Janeiro, e era uma mansão! ‘Não, eu não vou’, respondi. Eu não me sentia à altura, o trabalho exigia conhecimentos que eu não tinha. Meu amigo respondeu: ‘Você vai sim, porque eu já marquei a entrevista, se você não for eu vou ficar mal’. Fui com muito medo, nervosa. No fim do dia, me ligaram: ‘Pode começar amanhã?’

Aquela foi uma virada de chave na minha vida, porque o salário era legal, tinha plano de saúde para mim e para os meus filhos e vale-alimentação e refeição. E eu amava trabalhar lá. Em dois meses, quando as coisas voltaram a se estabilizar, voltei ao Instituto Dara para abrir mão da cesta básica e das latas de leite, para que eles pudessem ajudar outra família. Fiquei só com os remédios, que ainda eram muito caros, até o dia em que recebi alta.

Desde então, fui me descobrindo educadora e empreendedora.

Hoje dedico meu tempo para a ONG que criei na comunidade onde nasci, na favela da Congonha, em Madureira, Zona Norte do Rio. Em 2015, fundei o Ler e Saber na Comunidade, um projeto de incentivo à leitura, acesso ao livro infantil e biblioteca comunitária.

A gente tem um sonho, que é contar a história da favela da Congonha, onde fica o nosso projeto. Porque é uma comunidade invisível para a sociedade, só aparece no noticiário quando acontece uma tragédia, como a que aconteceu em 2014. O nome da Congonha saiu no jornal porque uma mulher, Cláudia, auxiliar de serviços gerais, foi baleada pela polícia e, depois de socorrida pela viatura, acabou caindo pela caçamba, ficou presa pela roupa e foi arrastada no asfalto por pelo menos 350 metros. É por histórias assim que as pessoas ouvem falar da Congonha, e nós queremos mudar isso.

Trabalho com crianças e adolescentes, mas também com as mães. E uso a minha experiência com o Instituto Dara como inspiração. Em rodas de conversa, como no momento do Aconchego do Dara [atividade diária de diálogo e escuta com as famílias atendidas], incentivo o empoderamento dessas mulheres em todos os âmbitos, para que voltem ao mercado de trabalho, a estudar, e a ter, sim, um companheiro, mas não alguém que faça ela sofrer violência. Um pouco do que a assistente social e a psicóloga falaram comigo eu passo para frente. Busco, com essas ferramentas, provocar mudanças.

No Instituto Dara, aprendi a respeitar os processos e a transformar vidas, não só dar um auxílio. A gente não é assistencialista, a gente é uma associação cultural, que tem arte, que tem uma biblioteca. Porque aquele acervo lá não é meu, está disponível para a comunidade. Hoje, temos 5 mil livros catalogados e muitos ainda dentro de caixas. E oferecemos quatro atividades, além dos empréstimos de livros: mediação de leitura, oficina de trança, aula de dança e oficina de audiovisual para os adolescentes. Quero que as pessoas olhem a instituição como um pedacinho da casa delas.

Em 2022, fizemos um mutirão com grafiteiros na rua que leva à biblioteca do Ler e Saber para que pudessem ver de longe que ali funcionava um projeto cultural. Foi um domingo lindo, eu chorei demais. Nunca vi a comunidade tão mobilizada quanto naquele dia. Todo mundo participou, cedendo os muros das casas, oferecendo café e água. E as crianças viraram ajudantes dos artistas.

Tenho muito orgulho de ser reconhecida na minha comunidade como agente de cultura, uma mobilizadora, e não só como a “tia Vanessa”. Morei nessa comunidade por mais de vinte anos e não vi nada mudar. Com a chegada do Ler e Saber nesse território, transformamos muitas histórias. Vem mais por aí.”

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