Em meio aos preparativos para o G20, que acontecerá na cidade do Rio de Janeiro em novembro de 2024, poder público, organismos multilaterais e sociedade civil se reúnem no Seminário Internacional de estratégias para a erradicação da pobreza. O evento, promovido pelo Instituto Pereira Passos, aconteceu no galpão da Ação da Cidadania. Foram discutidos temas ligados ao direito à moradia, mobilidade urbana, assistência técnica para habitação de interesse social, programas sociais em territórios e diferentes formas de intervenção para intervenção na redução das múltiplas dimensões da pobreza.

A pobreza é uma expressão da desigualdade interseccionada de classe, raça, gênero, diversidade e território, oriunda da concentração de riqueza socialmente produzida. No caso do Brasil, ela é determinada historicamente pelo modelo colonial escravocrata que violentou vidas negras e indígenas. A pobreza é multidimensional, ou seja, não se caracteriza apenas pela ausência ou insuficiência de renda, mas também é determinada historicamente pelo processo de restrição de acesso a direitos.  

A erradicação da pobreza é o Objetivo do Desenvolvimento Social 1- ODS 1, da Agenda 20230, pactuada entre as nações que fazem parte da ONU. É também um dos principais temas que mobiliza a reunião do G20, que reunirá o grupo de governantes e estadistas no Rio de Janeiro, em novembro de 2024. Henrique Silveira, representante da Secretaria Municipal da Casa Civil e do Comitê Rio G20, explanou sobre as três agendas prioritárias a serem tratadas no G20: a taxação de grandes fortunas, o financiamento para mudanças climáticas e o lançamento da aliança global contra a fome e a pobreza.  

Bolsa família, o maior programa de transferência de renda do mundo

Uma das estratégias de destaque na busca pela erradicação da pobreza é o programa Bolsa Família, um programa de transferência de renda condicionada que integra ações intersetoriais, especialmente com a educação de crianças e adolescentes, a saúde e a assistência social. Implementado desde 2003 no Brasil, o programa impacta não apenas na redução da pobreza extrema e na melhora do índice de Gini, que mede o grau de concentração de renda, mas, sobretudo, na redução da transmissão intergeracional da pobreza. André Simões, do IBGE, explicou como a entidade monitora os dados de impacto do programa e publicando anualmente a Síntese de indicadores sociais em seu site. Utilizando dados da Pnad Contínua, da Rais, do Inep, entre outros, são medidas as condições de cidadania, dos níveis de bem-estar, trazendo também uma perspectiva de enorme desigualdade social no país. A pesquisa tem como objetivo subsidiar políticas públicas e o planejamento estatal. 

Programa Territórios sociais

Motivado pela percepção da dificuldade de alcance das metas dos ODS, o Observatório para a América Latina e Caribe – OPLAC, com financiamento da Agência Francesa de Desenvolvimento, mapeou 17 iniciativas na região que vem contribuindo para o alcance dos objetivos. Entre elas, e relacionada ao ODS 1, eleita como a iniciativa de maior impacto está o Programa Territórios Sociais.

No Rio de Janeiro, cidade com mais de 6 milhões de habitantes, 22% da população reside em favelas. Diante de tal contexto, o Instituto Pereira Passos implementa desde 2018 o Programa Territórios Sociais, em parceria com a ONU Habitat. Trata-se de uma política pública que, a partir de dados coletados para identificação de vulnerabilidades territoriais e das famílias. Estratégia de intersetorialidade com a presença de 10 secretarias municipais. Baseado em 3 pilares: busca ativa, plano de ação integrada e monitoramento

De acordo com a representante da ONU Habitat, Daphne Besen, o programa hoje serve de inspiração para programas da entidade implementados em outros países. A partir do entendimento de que é nas cidades onde se concentram os maiores índices de pobreza, de emissões de carbono, de problemas das mais diversas ordens, como saneamento, mobilidade, acesso à nutrição de qualidade, o programa parte de um mapeamento das necessidades nas regiões com maior índice de pobreza e segue na articulação para acesso a serviços, políticas públicas e benefícios sociais.

Experiências internacionais e de organismos multilaterais

Sarah Habersack, representante da G&B, agencia governamental de cooperacão Brasil – Alemanha explica que é a partir dos anos 70, com o rápido crescimento populacional urbano, que a sociedade começa a discutir o direito à cidade. Entre as boas práticas e estratégias adotadas em outros países para a erradicação da pobreza, ela destacou, por exemplo, como na Espanha, 25% da população habita moradias sociais distribuídas nos territórios. Isso só foi possível acontecer regulando mercado imobiliário e tem um impacto significativo não apenas na renda das famílias, mas também na mobilidade urbana.  Outro ponto essencial para formulação de estratégias de erradicação da pobreza é diretamente ligado com a territorialização dos investimentos públicos da cidade, que no caso de São Paulo, ainda é muito desigual, com um contínuo investimento em infraestrutura nos bairros mais nobres e quase nenhum investimento nos territórios mais vulneráveis.

Dois conceitos precisam ser levados em conta na elaboração e implementação de programas governamentais. Um deles é o conceito de desenvolvimento urbano integrado, ou seja, integrar serviços essenciais nos territórios. O outro conceito é o de informalidade e institucionalização, uma vez que muitas pessoas, especialmente em favelas, não tem um CEP, e isso muitas vezes impede investimentos em projetos que não possam comprovar o domicílio do beneficiário.

Outra iniciativa internacional destacada como uma estratégia bem-sucedida de enfrentamento à pobreza é o Kudumbashree, maior movimento social de mulheres do mundo que nasceu em Kerela, no sul da Índia e hoje conta com a participação de mais de 4.5 milhões de mulheres. Nasceu com grupos de auto-ajuda em territórios. Percebendo a força do movimento, houve incentivo governamental para institucionalização, com o objetivo de permitir a pactuação de convênios governamentais para implementar políticas públicas. Como princípio, o movimento nasce do conceito de cuidado. Pessoas vulneráveis são em geral cuidadoras. Precisa pensar o espaço público para cuidadoras.  

Sarah também destacou o programa desenvolvido pela agência de cooperação técnica Andus, em proporcionar mentoria para mulheres negras para o clima. O projeto é uma parceria com o Ministério das Cidades e promove o desenho projetos de cooperação com mulheres negras a partir de seus territórios. 

A pobreza na infância e na adolescência

Santiago Varella, representante da UNICEF, apresentou dados de uma pesquisa realizada pela entidade e da criação de um índice para compreender o efeito da pobreza nas crianças. Por se tratar de índice feito para crianças, qualquer direito violado caracteriza pobreza, uma vez que todas as dimensões de direitos têm peso igual. A pesquisa mostra que entre 2016 e 2022, a redução foi de 66,1% para 60,3%. O estudo também demonstra que ¼ das crianças que não são pobres monetariamente são privadas de algum direito. No Brasil, mais de 19 milhões de crianças sofrem privação do direito à saneamento e a água de qualidade. Para conhecer o estudo completo acesse o caderno Pobreza Multidimensional na infância e adolescência. 

Redes de apoio das organizações da sociedade civil nos territórios

Gisele Dias, presidente da associação de moradores do Morro da Previdência, primeira favela do Brasil, conta como a comunidade se mobilizou durante a pandemia do Covid 19 e buscou ajuda entre organizações da sociedade civil como a CUFA, o Viva Rio e a Ação da Cidadania. Só assim foi possível enfrentar a situação do isolamento, da falta de renda e alimentação que agravou ainda mais a situação de vulnerabilidade da comunidade.

Ações de Incentivo à redução da Insegurança Alimentar

Em números absolutos, 14,7 milhões deixaram de passar fomo no Brasil, de acordo com o Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da IA no mundo. A fome caiu de 8% para 1,2% de insegurança alimentar grave no Brasil. Políticas públicas são a chave para erradicar a fome. É por isso que organizações da sociedade civil, como a Ação da Cidadania, além de prestar auxílio para pessoas com fome, monitora dados e pressiona o poder público para a adoção de ações que contribuam para redução da insegurança alimentar da população. Um dos objetivos da organização é também fortalecer redes já existentes de conhecimento produzido nos territórios vulneráveis onde já existem tecnologias sociais de sobrevivência. Além disso, é fundamental o acompanhamento da sociedade civil por meio da participação social para efetivação das políticas públicas. A organização também é voltada para a pulverização do conhecimento de outras formas de produção e consumo agroecológica, como as hortas urbanas. 

Outro destaque é o PNAE, Programa Nacional de Alimentação Escolar, política pública fundamental que garante a alimentação de milhares de crianças e adolescentes no país. O programa é complexo e abarca desde equipamentos e insumos, capacitação das equipes das escolas, aquisição e preparação de alimentos, educação alimentar e nutricional e busca por gêneros alimentícios mais saudáveis. Na cidade do Rio de Janeiro, a prefeitura já implementou 32 cozinhas comunitárias, na perspectiva de atuação não apenas na redução da insegurança alimentar, mas também contribuindo para a geração de trabalho e renda.  

Comunidades solidárias e cidades inclusivas

Implementado em 6 países da América Latina, o programa Cidades Inclusivas da ONU Habitat em cooperação com a União Europeia, é voltado à população refugiada e de imigrantes, criou o marcador de inclusão urbana para medir o grau de inclusão e integração proporcionado pelas administrações locais a partir do conceito de direito à cidade. Com base nas medidas apuradas, foram criadas estratégias e planos de ação em 10 cidades a partir da escuta da população migrante, contemplando as especificidades locais. Foram melhorados, por exemplo, 44 espaços públicos, com a pintura de murais contendo símbolos culturais e 7 centros comunitários, com a colaboração de 250 venezuelanos. Outra iniciativa foi a criação de rotas seguras para crianças e adolescentes. Ao todo foram beneficiadas mais de 10 mil pessoas com a criação da Red IntegrHa-bitat, uma rede de 110 centros de redução de vulnerabilidades a população imigrante. 

No Brasil, uma importante política pública voltada à inclusão é o PRONSCI Juventude, voltado para adolescentes de 15 a 24 anos, com vulnerabilidade sociorracial agravada. Dois projetos piloto acontecem em Rio de Janeiro, na favela da Maré, Penha e Manguinhos e em Salvador, na perspectiva de transformar espaços estigmatizados como “bolsões de miséria”, mas que na verdade são territórios de potência. O público prioritário é de jovens fora da escola, que tenham passado pelo sistema socioeducativo ou prisional, ou que tenham histórico familiar de violência. O programa oferece oficinas, acompanhamento multisetorial, elevação da escolaridade e auxílio financeiro de R$ 500,00 por mês. A metodologia principal é a redução de riscos e danos que visam minimizar danos causados pelos efeitos prejudiciais do uso da droga, incluindo aliciamento dos jovens para o crime organizado e o risco de morte. Além disso, o programa se baseia na lógica de desenvolvimento comunitário, trabalhando a educação política para o envolvimento de todos no tecer da rede de apoio aos jovens. O PRONSCI enfrenta desafios como o proibicionismo, o manicomionalismo, a medicalização e o encarceramento. 

Soluções para Habitação Social

Sydnei Menezes, do Conselho de Arquitetura e Urbanismo tratou do papel social do arquiteto e ressaltou a importância de um compromisso público dos representantes eleitos no executivo e legislativo com a garantia de recursos para a efetiva implementação da lei Assistência Técnica Habitacional de Interesse Social – lei ATHIS

A pobreza habitacional e a falência do planejamento urbano

A desigualdade socioespacial é naturalizada porque muitos acreditam que não tem solução. O passivo é imenso e tem raízes históricas. Desde a lei de aquisição de terras, implementada em contrapartida ao fim da escravidão: libera-se as pessoas escravizadas, mas as terras passam a ser disponíveis apenas aqueles que tivessem condições de comprar. 

Hoje, mais de 332 mil casas no Brasil não tem banheiro e 11 milhões não possuem adequação do ponto de vista do abastecimento de água.

O Conselho dos Arquitetura e urbanismo escreveu uma carta aos candidatos a prefeito para divulgar a necessidade de recursos públicos para efetiva implementação da lei Assistência Técnica Habitacional de Interesse Social – Lei Athis. Um dos maiores desafios é a adoção e regulamentação da lei no nível municipal. 

Para Marli Peçanha, da Secretaria Municipal de Ação Comunitária – SEAC, é de suma importância para resolver o problema da precarização habitacional. É o que acontece no Projeto PUC-Rio – Horto, regularização, memória e resistência pelo direito à moradia, uma luta contra a exploração econômica fundiária, projeto elaborado em diálogo com os moradores locais. Ocupações, Ocupação Manoel Congo para morar em condições de dignidade. A Lei Municipal 6.614/2019, apresentada pela vereadora Marielle Franco, que institui a assistência técnica pública e gratuita para projetos e construção de habitação social. AEIS área especial de interesse social – Reviver Centro, na área central e portuária, são 45 ocupações no centro da cidade. Programas de democratização de imóveis públicos abandonados para transformar esses imóveis para moradia aos que delas necessitam e não serem entregues para a especulação imobiliária.

 

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